terça-feira, 10 de novembro de 2015

O homem

O homem chegou menos sério como de costume. Estava animado naquele sábado após sair do exaustivo expediente. Ao entrar em casa, abriu um largo sorriso desdentado para a esposa que lhe retribuiu com um ríspido baixar de pálpebras. O desdém da gorda mulher, fez com que ele deixasse sobre o "balcão americano", ainda sem reboco, um fino saco plástico no qual jazia três espetinhos: um de frango e dois de porco. No sofá rasgado das tantas mordidas de rato, os dois filhos lutavam pelo controle remoto. O homem balbuciou algo que em nada chamou atenção. Seguiu pelo corredor, antes, porém, observou que sua companheira lambia os gordurosos dedos, limpando-os, em seguida, na blusa azul desbotada.
No quarto, ainda lhe sobrou tempo para ler o papel amarelo de ameaça. Um taciturno pensar, antes de retirar do bolso da calça jeans, lavada de graxa, um bilhete com "jogo do bicho" e, deixá-lo sobre a penteadeira empoeirada e envelhecida pelo tempo. De repente, de súbito, o estrondo final. No chão, seu corpo, já sem vida, dividia espaço com a arma enferrujada herdada de seu pai.

domingo, 4 de outubro de 2015

O porta-retrato azul


Todos os dias e, quase sempre no mesmo horário, Tania colocava a água para ferver. Sabia que o filho adorava tomar café quando chegava da universidade. Distração boa depois das obrigações diurnas. Recém-ingresso em economia, ainda não se habituara por completo a nova rotina. Diariamente, ele acordava às 09h30min da manhã. Daí, as ações eram metricamente calculadas a fim de evitar atrasos quanto à condução da tarde que cotidianamente tomava para chegar ao curso. Orgulhosa, Tania acordava antes do filho e preparava-lhe o desjejum.
“a benção, mãe”.
“Deus te acompanhe meu filho”
E, assim, despediam-se momentaneamente.
Depois de abençoá-lo, Tania fazia os afazeres domésticos mais pesados que não eram poucos.  Embora fosse modesta a casa onde morava com o único filho, o trabalho era árduo. Seis cômodos apenas: sala, dois quartos, cozinha, banheiro e uma pequena despensa na qual acomodava a velha máquina de lavar. Mesmo assim, Tania exauria suas energias com o trato do lar. Não trabalhava fora. Vivia da pensão do Estado, deixado pelo marido, um policial militar, morto após salvar uma moça de uma tentativa de assalto.  Não resistiu aos três tiros que levou quando voltava para casa após o seu turno. Dias difíceis. Tania começou a lavar roupa para madames, fazer faxinas em casa de família mais abastadas. Vira-se como podia. Havia uma cria para alimentar. Tempos difíceis àqueles que só melhoraram quando saiu o benefício social que lhe garantia a tão almejada pensão do governo.
 Verdade que a matriarca cochilava após o almoço, despertando aproximadamente às 15h00min. Uma última garimpada na casa, um pano úmido da mesa a fim de expulsar as moscas que teimavam em sobrevoá-la eram as ações quase que automáticas.  Após passar o tão desejado café que o filho tanto gostava, ela sentava no velho sofá revestido de uma manta igualmente gasta e, esperava-o.  Olhava para o relógio que há tempos fora fincado na parede da cozinha. Pedro, o filho, chamava-o de Big Bem, com M mesmo. Uma nítida referência ao famoso relógio inglês. O cuidado excessivo para com o filho veio justamente de tê-lo como família. Desde morte do pai, transformou-se como a unívoca figura masculina naquela casa e companhia inseparável da mãe. Apoiavam-no um ao outro.
Quando de algum atraso do filho, Tania já se desesperava, saindo constantemente, dando voltas na calçada numa tentativa vã de diminuir a aflição. Seu penar só lhe cessava os tremores das pernas quando o via dobrando à direita da Rua André Breton.  Nesses momentos, muitas das vezes, não se continha, indo, assim, ao seu encontro. Já dispostos na redonda mesa de quatro lugares, solviam o saboroso café juntamente com alguns biscoitos amanteigados que eram cuidadosamente colocados dentro de um bote de vidro.
Assim, em estado de comunhão e amizade, permaneciam. Conversavam sobre tudo. Minutos sagrados para ambos. Desfrutavam ao máximo. Momento tão esperado do dia. Certa tarde, quando ele falava animadamente de um seminário bem sucedido na disciplina de história econômica geral, interrompeu aquela habitual confraternização para que sua mãe atendesse Sonia, sua tia.  Vez por outra, Sonia visitava-os. Encontros que se intensificaram nos últimos meses. Quase que toda tarde, nos últimos três ou quatro meses. Eram irmãs mais chegadas desde infância. E, melhores amigas também. Foi justamente Sonia que acobertava o namoro da irmã mais nova quando era terminantemente proibido o encontro com algum moço que se engraçasse pelas filhas de seu João. Pai linha dura delas.
“mulher mal falada, não casa”
Resmungava seu João quando de algum sermão em ambas.
Rememoravam essas e outras danações do tempo de meninas. Pedro se divertia as gargalhadas quando de um dia no qual sua mãe e sua tia levaram uma tremenda surra por terem indo a uma festa no racho numa cidadezinha circunvizinha. Tardes boas.  Ficavam os três degustando do amargo café em volto as lembranças de ambas. Assim, passava-se o tempo.  
Sonia, naquela tarde, após lavar a louça, beijou o rosto da irmã, dando-lhe os calmantes prontamente prescritos. Ao sair, ainda lhe deixou a promessa de volta dali a dois ou três dias. E, olhando o quarto vazio, voltou para irmã e, disse-lhe:
“eu te amo”
E, foi-se ao encontro de seu palio fire. Chegando à sua casa, olhou para a estante de sua sala, e, beijando um porta retrato azul, pensou na possibilidade de passar alguns dias na casa da irmã. Ideia boa, mas longe de materialização devido tanto ao trabalho na confecção quanto aos cuidados do lar, com marido e com três filhos. Limitar-se-ia ao café de todas as tardes e, rejeitando a agora longínqua ideia, devolveu o porta-retrato do sobrinho falecido a estande e pôs a preparar a janta da família.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O Necrotério

Contava-se aproximadamente às 00h15min quando ele, apressadamente, chegou ao trabalho. 15 min atrasados do seu horário habitual. Atuava, há exatos seis anos, no único necrotério da cidadezinha do interior onde morava desde nascedouro. Dava-se melhor com os mortos, diziam.  Ia quase que religiosamente ao ardo ofício. De segunda a sexta, no turno da noite, labutava na higienização daqueles que já não mais estavam. Acostumou-se àquilo. O contato direto com os mortos não o assustava.  Fascinava-se até. Não com a morte em si, mas com as fabulações que criava ao vê-los. Muitas das vezes, imaginava como ia à vida deles. Os projetos interrompidos, os relacionamentos fatigados, ou imaginava, mesmo que cinicamente, as últimas relações carnais. Por vezes, fitava-os a fim de constatar, através das faces dos falecidos, algum vestígio que pudesse adivinhar-lhes as profissões.
“Esta tem cara de advogada, já este de policial”
Uma de suas distrações corriqueiras. Interação sem ruptura. E, assim, ficava. Monólogo estranho. Sim. Habituou-se àquilo. Ajudava-lhe a lidar com ela: a solidão. Às vezes, inclusive, desabafava as agruras da vida com algum recém-chegado. Entretanto, dificilmente envolvia-se emocionalmente com a sua matéria de trabalho. Em duas ou três ocasiões, porém, deixou-se levar pela emoção. A primeira foi logo no início quando ainda atuava no turno diurno. Às 14h 30 min, aproximadamente, limpou um garotinho de 6 ou 7 anos que morrera afogado no rio de um povoado próximo, enquanto seus pais, já embriagados, comemoravam o nada com os amigos recentes. Domingo de sol. Não se deram conta do desaparecimento do filho caçula. Aflição, O desespero tomou a cena até a constatação. O choro incontrolável ao avistar um rapaz forte trazendo o frágil corpo inerte. Bracinhos sem vida. Domingo de sangue.
Em outra ocasião, chegou a chorar ao ver uma moça de aproximadamente 20 anos, depois de ter sido espancada, estuprada e lhe arrancado os mamilos. Selvageria. No mais, aprendeu, com o tempo, a imparcialidade precisa durante sua jornada de 00h00mim as 6h00min da manhã. Tudo pelo sustento do lar. Aceitara o emprego quando da sua demissão no antigo serviço numa indústria de fabricação de produtos de higiene. O costume com limpeza fez-lhe rapidamente se familiarizar com o ambiente do necrotério municipal. Nunca sentiu nojo dos corpos cadavéricos que chegavam as suas mãos. Sentia horror mesmo ao pensar num corpo enterrado sem o devido asseio. Achava o maior do desrespeito. De fato, tinha respaldo entre os colegas de ofício. A todos lhe agradava sua personalidade altruísta e dedicada as suas funções.
Naquela noite, porém, percebeu uma movimentação não habitual em frente ao esbranquiçado prédio. Há tempos, não havia reforma. O repasse de verba há meses não chegava. Parte do reboco já havia cedido, além, de haver algumas infiltrações. Nada divulgado na mídia. Contudo, havia boatos de desvios de verbas de algumas repartições públicas a fim de cobrir o rombo das últimas campanhas políticas na cidade. O necrotério, óbvio, entrou na lista de desvios de recursos.
As precariedades do local só desviaram sua atenção quando foi chamado pelos policiais que o aguardavam desde 22hs00mim.
“O senhor pode nos acompanhar à delegacia...”
Na delegacia soube o motivo da tal interpelação. Alguém tivera uma relação sexual com uma adolescente que morrera de traumatismo craniano. Asco generalizado. Tornou-se o principal suspeito do crime de necrofilia. Assim, sem recursos que lhe garantisse um advogado particular, ficou apreendido no distrito policial onde permaneceu por dois meses até a apuração do caso.  Enquanto isso, na cidade, instaurava o burburinho em torno do assunto. Opiniões divididas. Alguns o defendiam veementemente, apontando-lhe as muitas qualidades éticas e morais. Outros, contudo, davam-no tons de incertezas dados a sua excentricidade.
Numa quinta-feira de intenso calor, foi divulgado o laudo pericial que constatou a presença de esperma dele dentro da vagina da moça. Ele, sem nenhum esboço de arrependimento, relatou ao delegado a consumação da necrofilia, detalhando-a com rigor detalhista. Contou que fizera sexo com a defunta por aproximadamente uma hora. E, cinicamente, justificou-se:
“Ela já estava morta mesmo”.
Para família dela ficou a ampliação da dor.

sábado, 26 de setembro de 2015

Multiprocesso

Processo
Avesso
Digresso
Contra-verso
Engesso
Cesso
Reingresso
Ingresso
Reprocesso
Excesso
Confesso
Congresso
Recesso
Retrocesso
Atravesso
Progresso
Reverso
Desprogresso
Abcesso
Insucesso
Desavesso
Reinpresso
Verso
Café-expresso.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Passagem

Os gritos de Dona Carminha ecoavam na rua X. Uma ruazinha não asfaltada e de ‘gente boa’ como dizia seu Afonso, proprietário do só brasa, boteco de esquina e point dos bêbados e dos moradores da vizinhança que descarregavam o cansaço de mais um dia de trabalho duro. O papo corria solto entre a rapaziada, enquanto o fígado era forçado a trabalhar mais intensamente a fim de metabolizar o etanol ingerido. Os reclames do trabalho, a segunda reprovação do filho, aborrecimentos da política, o beijo “gay” na novela, o aumento dos preços dos produtos, os reclames das esposas. Em geral, as mesmas prosas. O só brasa era um simples boteco de subúrbio, embora aconchegante, principalmente pela simpatia e bom humor de seu Afonso. Vez por outra, os papos ficavam um tanto exaltados. As últimas partidas de futebol eram responsáveis pelo aumento da testosterona entre os cachaceiros assíduos. Exaltações que só paravam quando alguma mulher rabuda, propositalmente, passava entre as enferrujadas cadeiras expostas na calçada. Assobios e declarações exageradas faziam a festa no bar. De repente, uma risada generalizada após ouvir seu Joaquim, de 65 anos, dizendo que faria miséria com o material que há pouco atravessara seus fatigados olhos míopes.
“ O senhor ainda lembra como faz, seu Joaquim”
Seu Joaquim resmungava contra os gracejos e gabava-se dos seus feitos sexuais, expondo como argumento, os treze filhos que teve. Naquele dia, porém, foi os gritos de dona Carminha que chamaram a atenção.    Em instantes, uma multidão se avolumou em frente ao portão, orientados pela rouca voz oriunda da casa branca de dois andares. Na rua, o contumaz das tardes transformou-se em alvoroço. Alvoroço generalizado. Dona Rita, para desgosto de seu João, conhecido como resmungão, lavava a calçada.  Os assíduos frequentadores degustavam, entre um gole e outro, os corações de frango demasiadamente salgados. Pivetes jogavam bola na rua, enquanto dois vira-latas rasgavam os sacos plásticos a fim de devorarem o resto de comidas podres.   
Dona Carminha chegou do fábrica de costura exatamente às 17:00. Entre um cumprimento rápido a algum vizinho ou uma parada estratégica no mercadinho de seu Cosme, levou pouquíssimos minutos. Como de costume, dirigiu-se à cozinha a fim de iniciar à preparação do jantar. As ações seguintes, metricamente calculadas, transcorreram normalmente, embora, dona Carminha tivesse estranhado a demora da filha de ir ao seu encontro. No auge dos seus 16, idade na qual as garotas despertam os feromônios masculinos, Andrea desfrutava de boa saúde e bela desenvoltura corporal. Cursava enfermagem no ensino médio-integrado. No geral, uma tímida garota que além de debruça-se aos estudos, costumava descer e ir ao encontro da mãe para ajudá-la no preparo do jantar. Momento ímpar para as duas. Ficavam lá conversando e divagando sobre como havia sido o dia. Um possível desatino na escola, um acontecimento no mundo ou mesmo uma fofoca do bairro. Conversavam sobre tudo. Tudo mesmo, inclusive sobre sexo.
“Está se cuidando, não é?”
“Sim, mamãe.”
E, assim, as duas riam. Abraçavam-se. De fato eram as melhores amigas. Confidentes e parceiras. Reinava entre as duas a cumplicidade. 
Porém, naquela tarde, algo estranho pairava. Sentimento de mãe não falha. Intuição. Ao perceber a demora da filha, dona Carminha dirigiu-se ao andar de cima a fim de tomar ciência da filha. Ao bater a porta, estranhou ainda mais o a falta de retorno aos seus chamados.
“Andrea, tudo bem filha?”
A tensão ia aumentando a cada vã tentativa de comunicação com a filha. O silêncio angustiava dona Carminha, sufocando-lhe, dificultando, assim, a respiração com o já sôfrego pulmão encharcado de anos de nicotina. Com o passar dos minutos, o timbre de voz aumentava, transparecendo o desespero, fazendo-lhe bater freneticamente a porta branca do quarto. Tentou arrombá-la. Tentativa frustrada pela falta de força. Pôs-se, então, a chorar.  Sabia que algo de anormal sucedera. De repente, ouviu passos em sua direção. Alberto mal acabara de chegar da indústria têxtil na qual trabalhava, rumou pelas escadas, orientado pelos socos no andar de cima. Não precisou perguntar à esposa para compreender o que estava acontecendo. Repetiu, assim, as ações de socar a porta. Cada vez com mais força. De tanto bater a porta, o suor caia-lhe da testa, pingava a ponto de cola-lhe a camisa gola-polo verde ao corpo.
“Andrea?, Andrea?”
Resolveu, então, arrombar a porta do quarto da filha. Feito obtido com êxito e rapidez pela força empregada nos chutes. Aproximadamente uns cinco ou seis. O corpo inerte. De bruços jazia.    
“minha filha, meu Deus” 
O impulso primeiro de seu Alberto foi ter de encontro da filha uma possibilidade, mesmo remota, de vê-la com vida. Triste constatação. O corpo já sem pulso. Sinais vitais anulados. Lembrou-se da filha criança quando da primeira vez que a levara para ver o mar. Ela corria feliz em direção às ondas, voltando-se desesperadamente quando elas retornavam as areias.
“papai, papai”  
Dona Carminha, atônica, continuava debruçada ao chão. Olhava o marido com uma vaga esperança de não ouvir o que seus sentidos já sabiam há alguns minutos. Seu Alberto, como num gesto racional, ajuda a esposa a levantar e busca nos seus bolsos seu aparelho celular para acelerar os procedimentos. Antes, porém, advertiu dona Carminha para não mexer no corpo de Andrea.  
Na rua, aumentava a quantidade de curiosos a fim de saber o porquê dos gritos. Curiosidade sanada com a chegada do carro do IML. Comoção generalizada. Andrea de fato era uma moça querida por todos. Tanto pela educação e simpatia quanto pela beleza. Com a partida do corpo e a recusa da família em falar, aos poucos ia cessando o número de pessoas. No só brasa, os frequentadores voltavam aos seus copos. Os papos agora eram justamente a suposta causa da morte de Andrea.
“ Assassinato”
“ Roubo”
Dona Rita, que agora não mais lavava a calçada, opinou com dona Gertrudes:

“Doença, minha filha. A pobrezinha era muito magrinha e amarelada”
Meses após o incidente, as pessoas ainda mantinham a curiosidade de saberem o que de fato havia ocorrido com Andrea. O laudo dos peritos apontava para uma tentativa de estupro e estrangulamento. As investigações indicavam para uma suposta luta corporal entre a vítima e o algoz. De fato Andrea lutara contra o agressor. O que mais intrigava o delegado responsável é o fato do não arrombamento da porta de entrada da casa. Na linha de investigação estavam como suspeitos: o ex-namorado e o próprio pai. Por falta de provas, o caso foi arquivado, embora o delegado soubesse que o assassino entrara pela porta da frente.
Depois de um ano, quase ninguém se lembrava do ocorrido.

No só brasa, o samba animava os frequentadores. A vida continuava sem Andrea.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Indébita, o pagar da carne

Acabara de sair do banheiro.  Os cabelos ainda molhados denunciavam a ducha de há pouco.  Com a sempre toalha de seda, presente da madrinha promotora de justiça, esfregava  entre as loiras madeixas, respigando as últimas gotículas no chão branco do quarto. Com a toalha úmida, jogou-a sobre a cama e, de súbito, começou a apalpar a rechonchuda vulva rosada.  Daí, ao impulso impensado de gravar-se no celular foi instante.  O dedo indicador da mão direita deslizava suavemente ao longo dos fios grossos de carne. Um gélido calafrio subia-lhe da coluna cervical a nuca. Uma suave pontada no baixo-ventre impulsionava-a intensificar os momentos. A penetração progressiva. Cada vez mais agressiva. Os três dedos devoraram-na. Pareciam ter vida própria. Os gemidos de prazer saiam sufocados diante da limitação dos metros quadrados que a distanciam no quarto da irmã caçula. Vez por outra, retirava os “amiguinhos” e, assim, batia-lhe forte sobre os fios vermelhos umas três a quatro vezes, para só depois lhe enfiar novamente os dedos freneticamente. Gemia. Cada vez mais. De repente, um som com uma maior amperagem. Uma breve pausa. Um olhar sorrateiro. A porta nada alarmara. Susto contido. Mais rapidez nos movimentos. A mão esquerda apertava-lhe os seios. Os bicos avermelhados apontavam sua excitação.Mais gemidos. Os movimentos progrediam no compasso do seu prazer. Gemia gemia ... sensação que antecede... Enfim, o gozo. Espessura grossa e branca. Tirou seus dedos molhados. Um por um, ela lambia-os da unha de tintura vermelha até o fim deles.  Antes, porém, levou o aparelho celular, testemunhal daquele monólogo, à altura da linda face angelical. Os verdes olhos fixavam-se para câmera do smarthphone a fim de registrar sua “aventura”. Às vezes, fechava-os por instantes, abrindo-os grandes em seguida. Olhar provocador.  Contava com seus 19, embora aparentasse bem menos.  Passava a língua levemente nos lábios, da esquerda para direita, mordiscando os carnudos vermelhos lábios. Umedecia-os. Delicadamente lambia as últimas gosmas esbranquiçadas. O beijo final para câmera.  Mais provocação.
A arma do menor infrator penetrou na súbita passagem. Constatou que não fora dessa vez. Da agonia depois, saltou do copo com líquido cheio de sódio e cristal seus pensamentos. Lembrou-se do aparelho que fora com o tintilar da voz infantil.  Na casa da madrinha, aos choros e berros indecifráveis, ela reavia sua privacidade expandida. Já projetava sua vida arrematada a todos. Ideia oca tivera. Vulgarização de si. A madrinha, entre uns goles de Contreau, rabiscava as possibilidades a fim de munirem-se contra o porvir. Contou detalhadamente à madrinha as agruras que havia experimentado. Até então, nunca havia pensado na problemática social.
Ao ir à faculdade, percebera os olhares sugestivos, os sorrisos de canto de boca ou mesmo dedos lhe apontando. De repente, palavras desaforadas dirigidas a ela referente ao dedo indicador. Piadinhas vorazmente destruíram-na. Desesperadamente e, ao choro, correu pelos corredores ao estacionamento.  Acordara com o acariciar da mãe. Um susto incomunicável. Outros presságios se seguiram. No dia do roubo, não foi à universidade na qual cursava o quarto período de publicidade. Ausência que se repetiria por toda aquela semana. Impulsionada pela madrinha, voltou, com bastante custo, a suas atividades cotidianas. Embora, vivenciasse o terror. A cada sorriso uma angústia, a cada olhar a si uma interminável aflição. Suava. A vontade iminente de ativar o aparelho lacrimal. Constava que todas haviam visto sua nudez imprudente. Maldita ideia, pensava. Tudo mudou. O isolamento social necessário. Não era a mesma. Sentia-se violada. Violação autorizada por mim. Pensamentos que vieram enquanto folheava, sem nenhum interesse, uma desatualizada revista que jazia no centro-sala da clínica de doutora Fabíola. Estuprada virtualmente, embora não tivesse nenhuma concretude dos fatos, vivia no invólucro de si. Protegida. Agredia a todos antes mesmo de se aproximassem.  Raros eram as ocasiões na qual alguém rompia aquele prepúcio de exílio voluntário. Certa vez, ao ver uma belíssima jovem se aproximar, enquanto tomava sol na área da piscina do edifício onde morava, teve um impulso de levantar-se e ir-se antes da importuna. Entretanto, antes que pudesse por seu plano em curso, fora interpelada com um sorriso límpido seguido de um bom dia entusiasmado. Respondeu-lhe dissabores antes da moça completar a enunciação. A cabeça em frangalhos a cada ida à terapia. Sem nervos.
Um dia, quando voltara de mais uma sessão, no banho de sempre, ao se refrescar do suor pregado no corpo, as gotículas quentes misturavam-se com as gélidas que caiam do chuveiro. Deslizavam, desviando-se de curso ao colidir com os pontudos mamilos rosados. Viveria a dualidade que ela mesma provoca-lhe. Voltara a se flexionar depois de meses.                 

sábado, 6 de junho de 2015

A Fotógrafa


Diante do espelho do seu quarto, gostava de se exibir nua. Naquele grande oráculo de vidro no qual se acostumou a examinar suas reluzentes curvas, suas alvas nádegas em formação promissora, seu sexo rosado, exauria-se consternada com seu narcisismo. Passava longo tempo a tecer suas finas madeixas pretas e, sempre na pausa do pente, virava-se ao tal espelho, inclinava a face acima do ombro, empinava-se e dava batidinhas na bunda. Gostosinha.
“ Cibele, vais se atrasar”
Cotidianamente, acordava daquela contemplação narcisista com os chamados de Dona Margarida, sua boníssima genitora. Jovem e bonita, Cibele era uma ótima filha. Sempre educada e solícita com os pais. O pai, seu João, trabalhava com representação de firmas ou coisa desse tipo. Já dona Margarida ralava em um cartório do centro da cidade. Ambos trabalhavam fio a fio a fim de dar melhores condições de vida para a única filha.
“  hoje é a tal entrevista?”
“ Sim mãezinha”
“ Quer que eu vá te deixar, minha filha?”
“ Não precisa seu João. Já sou uma mocinha” Saiu-se rindo, antes, porém, deixou um beijo na face de seus genitores.
Chegou às 15:30. Uma hora antes do horário marcado. Dirigiu-se à recepção do estúdio FOX  MAGAZINE onde foi atendida e orientada a aguardar que a chamasse.  Enquanto esperava, observou tudo que seus castanhos olhos puxados puderam apreender. A mobília colorida, os quadros surrealistas de Dali na parede, fotografias na mesa central, revistas sobre a história da fotografia, colagens de  Andy Warhol...
“ Cibele. Cibele?
“ Ah! Desculpe-me. Estava distraída.  A moça da recepção apenas sorriu como se dissesse que não havia problema para tal concatenação.
“ Siga em frente no corredor, dobre à direita. Porta azul, boa sorte”
“ Obrigada”
Trêmula, Cibele seguiu na direção da porta na qual daqui a pouco adentraria e passaria por uma sabatina a fim de conquistar o tão almejado primeiro estágio na área de concentração de seus estudos: fotojornalismo.
“ Entre”
“  Boa tarde”
“ Boa tarde, tudo bem, Cibele?
Impactante. Essa foi a primeira imagem da mulher que lhe disparava perguntas e mais perguntas sobre as habilidades profissionais da moça: manuseio de câmera, domínio razoável da escrita padrão, disciplinas já cursadas na graduação...
“ Então, cursas o 5° período de Comunicação Social...?”
Cibele respondia com exímia prontidão a cada quesito da editora chefa da FOX, embora observasse atentamente o batom vinho na boca carnuda de Paula. Linda. Paula, na casa dos 27, era uma publicitária já bem encaminhada na profissão herdada da mãe. Era sim de uma família abastada na qual vários empreendimentos consolidaram o voluptuoso capital familiar: hotéis, pousadas, restaurantes...
A administração dos negócios, desde o avançar temporal dos pais, ficava a cargo dos três filhos, obedecendo a aptidão de cada um: George que estudou turismo e gastronomia, ficou responsável pelos restaurantes, enquanto Kleber, formado justamente em administração,  encarregou-se de tocar os hotéis e pousadas espalhadas no litoral nordestino. Assim, Paula ganhara como presente de formatura um estúdio da família para administrá-lo. É bem da verdade que tivera essa benesse que a possibilitou tecer e equilibrar sua vida profissional e financeira. Entretanto, Paula tinha sim um apurado de talento e ousadia. Ampliou os horizontes da empresa de comunicação, expandiu parcerias e, de quebra, firmou contratos rentáveis com campanhas publicitárias para o governo. Atualmente buscava uma nova assistente depois da demissão de Sandra por motivos de “deficiência técnica” como a própria Paula expressaria em uma conversa com os pais na ocasião. 
Cibele buscava desde o início de sua vida acadêmica uma oportunidade de aliar prática a teoria. Leu o anúncio nos classificados do jornal da “promissora” vaga.  Imediatamente, mandou o currículo como mencionado no matutino. Após alguns dias, recebeu um telefonema marcando uma entrevista.
“ Desculpe-me, eu estou...”
Não se sentiu muito a vontade com a câmera, apesar de ter sido exímia nas disciplinas de fotografia. A presença e, principalmente, aproximação de Paula nas suas costas, acelerara seus batimentos cardíacos. A respiração também acelerara. A passividade e o nervosismo de Cibele despertara um aura sensorial de prazer e fascínio em Paula.
“ Tente de novo, meu bem...” . Meu bem?, estranhou.
A graciosidade da fala somada o largo sorriso que denunciava o quão era alvos e bem tratados a arcada dentária da publicitária, contagiaram Cibele e fizeram-na concatenar em si uma confiança exacerbada. Desta vez, poria a cabo toda punhado de dúvida  e hesitação sobre sua capacidade de manuseio daquela Canon...
“ Por hoje chega. Manteremos contato em breve...”
Apenas essa simplória frase foi ouvida por Cibele ao deixar a sala de porta azul. Para Cibele, não fosse o sorriso largo de Paula, daria por findado ali mesmo a esperança de obter aquele estágio. Foi justamente com outro sorriso que se despediu.   
Em casa, à noite, como contumaz, ficou pelada de frente ao espelho. A imagem de sua beleza quase perversa traziam-na excitação e soberba. Às vezes, depois do banho, colocava alguma música e dançava até à exaustão, rodopiando até cair de bruços sobre a cama.  Na manhã daquele dia, ainda nua, acordou com o despertador do smartphone ao lado do seu travesseiro. Percebeu que adormecera após seus passos de dança da noite anterior. Ainda sonolenta, observou uma mensagem ao desligar o irritante som do galo eletrônico. Ao ler, pulou imediatamente da cama. Um misto de satisfação e alegria inundou-na. Imediatamente deixou aquele estado de sonolência e meteu-se embaixo do chuveiro. Deixou-se num pensar mais verdejante, enquanto a gélida água percorria seu corpo.
Os dois primeiros dias foram de extremo encantamento e medo. Sempre com a solícita e afetuosa supervisão de Paula, mostraria suas habilidades naquele período de experiência  Trabalharia ali... Pertinho. Porta azul azul azul... Dali a uma amizade foi apenas o curto espaço de tempo de cinco dias. Paula a convidava a almoçarem juntas. Elogia tudo de CI. Dos negros finos fios de cabelo a roupas. Dizia que tinha se afeiçoado em demasia e se entusiasmado de mais por Cibele. Estranhamente, Cibele rebebia os elogiosos comentários de sua chefa com a maior naturalidade, embora estranhasse um pouco os olhares fixos e os sorrisos açucarados.
Habituou-se uma a outra. Geralmente, saiam juntas após expediente da empresa. Bares, exposições de arte, cinema...vez por outra, iam a casa de ambas. Sim. Ultrapassaram as paredes da FOX, embora não deixassem aquela repentina aproximação paralisar os compromissos assumidos. Tinham prazo e agenda corrida. Muitas propagandas a serem executadas. Certa vez, ao observar Paula conversando com o gerente executivo, bateu-lhe um aperto e uma imensa vontade de chorar. A possibilidade de não ser contratada trouxe-lhe uma inquietação.      
 Boca rosada, magrinha, minissaia e uma camisa vermelha. Foi assim que chegou ao apartamento 312, no 6° andar. Recebera uma mensagem de texto convidando-a tomar uns drinks. Ao subir pelo elevador, estranhou ter vindo sem sutiã já que geralmente usava a fim de avolumar um pouco mais os diminutos seios. Mal entrou, Paula, talvez de um súbito impulso freudiano, puxou-a pelo antebraço direito e, repentinamente, a solveu pela diminuta cintura. O beijo leve e brando. Azul azul azul...
Cibele deixara ser usada sem nenhum esforço. Numa submissão irreconhecível. Atada. Paula sugava seus seios com voracidade de um animal que há dias não come. Apenas fechou os olhos, enquanto Paula passava a língua na sua esbelta barriga rumo à vulva. Entregara-se de vez. Gemia Gemia Gemia...
Sentiu um pouco de asco quando Paula pós sua vagina para apreciação lingual.  Lambeu insegura, porém os gemidos de prazer da publicitária a estimulou a enfiar à língua cada vez mais profunda e ligeira. Umedecendo suavemente os dedos com a saliva, Paula enfiou a mão direita embaixo da minissaia vermelha listrada e introduziu na linha de Vênus o dedo indicador, depois o seu vizinho e conforme o degelo do iceberg, mais acelerado ficava o movimento. Chupou os dedinhos dos pés Da moça um por um... Novamente o beijo leve e brando.  Voltando a devorá-la em seguida.
Dias depois, já havia regularizado a documentação para assinatura de contrato de trabalho, quando recebera um envelope com as fotos retiradas no dia da entrevista. No envelope madeira ainda havia um bilhete: ‘FICARAM BOAS’. Cibele olhou para fotos, mastigou o chiclete no canto esquerdo da boca, sorriu e disse: “ Ficaram”. Azul azul azul...


.

domingo, 24 de maio de 2015

Quisera eu.

Quisera eu não mais fazer o poema mais lindo e tenso/ quisera eu não mais poder cuspir toda a velocidade das coisas/ quisera eu voltar a sonhar com uma casinha no campo com galinhas correndo/ quisera eu, novamente, erguer a bandeira preta da paz/ quisera eu poder jogar futebol na pista, sonhando eu ser o "anjo das pernas tortas" e mesmo sabendo não se-lo, com os dedões sangrando, continuar a quimera dessa realidade sonhada/ Quisera eu não ouvir os sons de bombas na França que sonho um dia conhecer/ quisera eu cantar-te ao pé dos ouvidos às doces palavras que somente as diabetes de amor absorvem.



O dormir do sol.




terça-feira, 12 de maio de 2015

Dia das mães

É costume, aqui no Brasil, comemorarmos o dia das mães no segundo domingo do chamado mês das noivas. Entre goles de chá, numa segunda-feira preguiçosa, pergunto-me se realmente há a necessidade de termos tal data comemorativa, pois, muitas das vezes, esquecemos do real sentimento deste dia justamente por estarmos atrelados pelo consumismo propagado pela mídia, principalmente em datas nas quais estamos, teoricamente, mais amáveis e sensíveis para com nossa genitora.  Assim, relacionamos o dia das mães aos mimos e presentes mercadológicos, enquanto que benesses mais importantes são esquecidas ao longo dos dias em troca de produtos de consumo.
A meu ver, nada de errôneo há em presentear nossas ilustres mães, autora de nossa existência. Afinal de contas, não há nada de mal em dar-lhes um presente que possivelmente trará alegria e contentamento. Porém, no mundo contemporâneo, o que percebemos é uma propagação a comprar, como se o resultado final de um dia de festejos fosse apenas o produto com tanto esmero embrulhado. O dia de nossas genitoras tornou-se símbolo do consumo pelo consumo, enquanto que a singela e pura satisfação é justamente a demonstração do afeto, do companheirismo e da consideração para com nossas “senhoras”, e não somente a satisfação imposta por viés mercadológica.

 Diz-nos a lenda que os primórdios desta celebração datam de maio de 1905 na cidade de Grafton, no estado da Virginia quando Anna Jarvis perdeu sua mãe, Ann Marie Reeves Jarvis. A jovem, diante da dor ocasionada pela perda de sua mãe, organizou, com a ajuda de amigas, um evento para homenagear todas as mães, além de ensinar às crianças a relevância da figura materna. Assim, celebrou-se um culto em homenagem às mães na igreja metodista na qual era filiada. O sucesso da atitude de Anna e suas amigas chamou a atenção da população e dos líderes políticos de então. A repercussão se espalhou pelo “tio Sam”, sendo adotada por outras regiões. Assim, em 1914, Woodrow Wilson, então presidente dos EUA, propôs o segundo dia de maio como o dia nacional das mães. Anna Jarvis se tornou, assim, patrona dessa data.
Hoje, porém, vemos bem distante atitude como a de Anna. Vejo filhos que não respeitam sua mãe, rebentos que não fazem uma visitinha, “crias” que nem ao menos fazem uma ligação a fim de saber como estão suas protetoras desde tenra infância. Enquanto isso, esses mesmos filhos postam, em épocas de festejo às mães, declarações amáveis para posarem de bons filhotes na internet via redes sociais. A artificialidade desses ditos “filhos” só não engana a eles mesmos. Assim, a lembrança de sua mãe só vem quando há alguma celebração relacionada diretamente a elas, tais como: aniversários ou dia das mães.
Ao pegar da ‘pena’ a fim de escrever esta crônica, lembrei-me em flash de momentos cruciais dos quais a participação de minha mãe foi de extrema relevância para meu estimado andar neste mundo. Mundo, muitas das vezes, cruel e injusto. Das muitas decisões que tive que tomar a estimada contribuição de diálogos que tive minha genitora, foi de preciosa valia para que eu pudesse direcionar minhas ações.

Domingo último foi mais um dia desses. Reunião leve e amigável na qual desfrutamos de uma excelente macarronada, um ótimo arroz à grega, uma feijoada com salpicão, alguns petiscos e, por fim, um delicioso mousse de chocolate. Amigos, família, namorada e, óbvio, a homenageada, todas estiveram presentes nesta reunião “domingal”. O mais importante em datas assim é justamente a comunhão e a paz que circula nas faces das pessoas. Sendo assim, desejo que os filhos deem a devida importância que suas mães merecem. Não somente nas festividades, mas durante todo o ano. Visitem-nas mais vezes, telefonem para conversar ou ao menos dizer um “olá”. Ou, ao menos, teclem com elas através dos whatsapp ou facebooks da vida. Não esperam que elas não estejam mais aqui para que possamos, mesmo que minimamente, demonstrarmos nosso amor para com elas.   E por fim, não perpetuem a ideia de apenas aquecer o consumismo, tornando, assim, o presente em ponto final da festa.

sábado, 2 de maio de 2015

Menina de areia


Espraiam-se na alva areia
A volta das ondas ao mar.
Assim sem a força de outrora
Encharcam a maré de saudade...
Diluem-se uma a uma.
Assim fluidas assim mornas...
Terce à secura nostálgica
Da menina de areia defronte a cantar.

Juventude Vilipendiada

      Há muito, tentei negar a máxima de Jean-Jacques Rousseau, pensador do iluminismo francês, em meados do século XVIII, na qual expressa uma avassaladora mensagem: “o homem nasce bom, a sociedade o corrompe”.  A partir dessa premissa, fico a pensar em todo o caos produzido nesta sociedade confusa e caduca. Os dizeres do filósofo do chamado 'século das luzes' invocam uma horrenda certeza que me parece cravada no âmago da consciência: Nossos adolescentes, crianças muitas das vezes, perdem-se denotativa e conotativamente no tempo e no espaço.
      Assim, facilmente, ao sairmos de casa para labuta hercúlea de todos os dias, deparamos quase que constantemente com cenas dantescas de crianças e de adolescentes pedindo esmolas, suplicando um trocadinho qualquer, seja próximo de semáforos, seja próximo de nossas residências.  Diariamente, essas cenas humilhantes e revoltantes enchem-nos os olhos com pavor e desgosto, o que nos faz pensarmos quais seriam as razões para que essa praga social ainda assole nossa sociedade.
      Primeiramente, a desestruturação familiar se torna cargo-chefe na metamorfose na qual transformam alguns jovens em “pedintes de rua”. Ao ver do escriba dessas mal-traçadas, nenhum pai ou mãe que ame seu filho e que esteja em sã consciência, deixaria sua carne, seu sangue, sua perpetuação genética na terra em horripilante situação. O mesmo se aplica aos filhos adotivos, filhos d’alma. Lamentável observar que alguns desses ditos “pais” que mais parecem monstros algozes de seus rebentos são patrocinadores desse cenário imoral e desumano enquanto que como genitores deveriam agir humanamente com seus filhos e, consequentemente, protegê-los, educá-los e amá-los condicionalmente.
     Outro fator preponderante para essa calamidade é justamente a ausência de políticas públicas de combate e prevenção a esse mal social. Percebemos que o Governo, em todas as esferas, é co-responsável por essa vulnerabilidade a que estão expostos nossas  crianças e adolescentes. Assim, penso que esse entrave seja extremamente dificultoso para progresso de uma nação, pois a politicagem que impera em “terras tupiniquins” gera um retrocesso, e, por conseguinte, uma espécie de paralisação do estado democrático de direito.  
      Ao andarmos pelas ruas, vielas e avenidas dos ditos grandes centros urbanos, percebemos o quanto parte de nossa juventude está vulnerável a múltiplos problemas sociais, enquanto que nossos governantes, em geral, demonstram descaso para tal situação. Um jovem pedindo esmolas na rua provoca uma série de conflitos, tais como: a criminalidade, as drogas, a prostituição, a violência urbana, o estupro, dentre outros germes que empobrecem nosso país.

       A partir de atual conjuntura social, faz-se necessário um olhar mais apurado e cauteloso do Governo a fim de solucionar ou ao menos minimizar essa espécie de peste que devasta uma considerável parcela da juventude brasileira. Necessita-se de construção e reestruturação de escolas públicas a fim de mantermos nossos jovens nas escolas, possibilitando a ótica de que os estudos são preponderantes à ascensão social, programas de estágio remunerado para incutir a satisfação de obter as coisas que desejamos através do dinheiro advindo do trabalho, uma maior interação entre pais e filhos como processo de instrução internalizando valores, ética e moral, preparação educacional dos centros de internação de menores infratores a fim de obter êxito na socialização, construção ou ativação de centros culturais e esportivos para propagar a cidadania, quiçá a descoberta de novos talentos.   E, assim, tentarmos apagar as cinzas de nossas ruas e colori-las das verdadeiras cores que nos interessam: as cores da justiça, da igualdade e da inclusão social. 


Menina cortesã

Pobre menina cortesã
De abrigo fácil no meio da noite
Reluz em si a amperagem
Do desejo a plenitude do gozo.
Pobre menina cortesã
Moribunda do prazer alheio.
Apruma-se para fealdade que a espera...
Minissaia, cano escuro, maquiagem gasta.
Truques e malícias.
Script de uma dama perfeita.
Pobre menina cortesã
Cocotte de luxo dos suados operários das fábricas, dos executivos endinheirados.
Vítima de seu consentimento, algoz de si mesma, atriz da promiscuidade.
Rímel de uma anjo perturbado.
Que por trás da carne usada
Encobre um choro censurado.
Pobre menina cortesã
Não se abstém dos perigos exaltados
Sífilis, gonorreia, hepatite e a sida incubada.
Pobre menina cortesã
Com quantos anos perdeu sua mocidade?
Em qual batom ficará sua última artificialidade?
Pobre menina cortesã
Solícita, aguarda o próximo enamorado.
Enquanto no azulejo branco do fétido banheiro,
Vê-se outra vez ceifada em lágrimas
As máscaras que esconde.

Um romântico contido

Impossível falar de literatura Brasileira sem mencionar o nacionalista radical, àquele que transformou seu nome em adjetivo, ou seja, iríamos todos nós, nascidos na terra de Iracema, nos torna Alencarinos.
José Martiniano de Alencar Junior, o cazuza na adolescência, e caturra na infância, nasceu em primeiro de maio de1829, em Messejana. De espírito inquieto e apaixonado, fora sempre taxado e/ou acusado de monarquista, conservador, tendo de se defender das acusações de escravista. Aliás, Alencar passou boa parte de sua curta vida se defendendo, tanto na arte literária quanto na política. O primogênito de Dona Ana Josefina e de Senador Alencar, queria uma literatura brasileira, um teatro nacional, uma música sem favores a cultura européia. Porém, Alencar não deixaria de reverenciar seus amados Lamartine, Victor Hugo, Chateaubriand, James Fenimore Cooper, Walter Scott, Balzac.
Ainda, na capital paulista, começou sua trajetória no mundo das letras, quando no primeiro ano do curso de direito,criou uma revista com os colegas, "Ensaios Literários", no qual publicou "A pátria de Camarão" (sobre Felipe Camarão que combatera a invasão Holandesa) e "Questões de estilo". Alencar era leitor oficial nos saraus da casa, nas noites, no Rio de Janeiro, quando seus familiares se reuniam em torno da mesa, iluminados pela Lâmpada de óleo para ouvir as novelas inglesas que muitas vezes arrancavam lágrimas dos ouvintes nos capítulos de maiores emoções. Alencar relembraria esses encontros em sua autobiografia "Como e porque sou Romancista":
                       "Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária que é, entre todas, minha predileção?"  
 Em 1851, Alencar estreia no jornalismo, no Correio Mercantil. Estreia na ficção em 1856, como o romance Cinco Minutos, em formato de folhetins no Diário do rio. O mesmo caminho percorrido por sua segunda obra "A Viuvinha".
Em 1857, publica, com grande repercussão, "O Guarani". A história de amor entre Peri e Ceci, o índio que se apaixona pela mulher branca, transformada em ópera nos acordes de Carlos Gomes, grande sucesso na Scala de Milão em 1870. Em 1857, estréia a peça "As asas de anjo" que fora proibida depois de três dias em cartaz.
em 1865, lança "Lucíola" e em 1863 lança seu segundo perfil feminino com "Diva". Alencar lança, em 1865, sua obra-prima Iracema, que narra a história de amor entre o fundador do Ceará, Martim Soares Moreno, e uma índia tabajara, a "virgem dos lábios de mel" e "cabelos mais negros como a asa da graúna". Em 1870, publica "O gaúcho, A pata da gazela, e O tronco do ipê". E lança Ubirajara e Senhora em 1874. Em 1875, sai O sertanejo e em 1893 sai a publicação póstuma do já citado "Como e porque sou romancista".
Alencar morre em 1877 de tuberculose, deixando para posteridade um legado de cultura, talento, ousadia e um projeto de construção de nossa identidade, a "cara do Brasil", para muitos considerado o fundador do romance nacional.

Conversas de bar

O incomum se faz comum. O imprevisto uma certeza. Os olhares sugestivos, os sorrisos discursivo e a vontade de tocar a boca da loira. A loira gelada que tanto nos afaga a alma e nos libera instintos. Sim. Instintos. Dos mais horrendos aos mais sublimes. Afinal, somos animais de carne, osso e pelo. No caso dos meus ilustres amigos de celebração a boêmia, mais carne e pelo. Ilustres que foram batizados de Marcio e Emerson. O boi e o Epi, respectivamente. E não me façam explicar tais apelidos, por favor. 
O que seria de nós sem nossos velhos e generosos amigos de batalha? Daqueles amigos fiéis que te ligam só para saber se estamos bem. Daqueles que só não emprestam dinheiro porque também não os tem.
Ontem, foi mais um dia desses que de não programado tornou-se um evento paralisante do tempo. Hipérbole? Talvez meu caro leitor. Mas foi assim que me senti quando "bebemoramos". E assim, talvez, sentiram-se meus fiéis escudeiros. Ontem, ao sentarmos a mesa do barzinho do Coelho, tivemos a oportunidade de falar e escutar o outro. o "outro" que tanto é ignorado pela lógica selvagem de nosso pós-modernismo. Conversa vai, conversa vem... Carro, dinheiro, relação homem e mulher, namoro, futebol, nossas profissões, nosso tão sonhado réveillon e pasmem iogurtes e queijos rodaram nos papos em nossa mesa melada da espuma da Brahma Fresh, e aqui não faço propaganda. Estou sendo fiel aos acontecimentos. E assim, quando a noite teimava em se fazer alta e o mini-garçom guardava as mesas e cadeiras, lembramos de que pela manhã tínhamos compromissos. Trabalho. Afinal, é se trabalhando que se paga a loirinha de cada dia.
Um leitor mais puritano, com todo respeito, poderá questionar a relação quase carnal entre boa amizade e bar. Não penso na impossibilidade de amizade fora do eixo bar, porém compartilho do pensamento do grande poetinha Vinicius de Morais: "Nunca vi boa amizade nasce em leiteria".

quinta-feira, 30 de abril de 2015

As Portas

As portas estão...
Assim nuas, assim vestidas. Não sentem vergonha por tais aspectos.
As portas simplesmente estão.
Calmas agora?
Elas ora estão abertas ora estão fechadas...
Algumas, insistentemente, fecham-se e abrem-se em um vai e vem indecifrável e confuso, rompendo a calmaria de outrora.
As portas apresentam-se nas mais múltiplas e carismáticas cores... azul, amarelo, vermelho e verde.
Onze! Oh Deus! Onze.
As onze trancam-se com cadeados cinza.  As chaves?
- Não as vejo.
Quatro delas apresentam-se entreabertas. São sedutoras. Querem ser exploradas?! Medo?
As portas não estão: nem tristes nem alegres. Apresentam um quê de dúvida e enfrentamento.
São iguais e diferentes.
As portas fitam-me. Querem a morte. Mas de quem? MEDO.
Apavorado, encarou-as expressando coragem e ousadia.  Mentira? Dissimulação.
Estou de paletó, terno e gravata. Já estou morto? MEDO MEDO MEDO.
Voltemos à poesia.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

O Elevador


Chegara ao prédio da assembleia aproximadamente às 3:45 da tarde. Logo ao adentrar o local de suma importância para o bem público, foi ao encontro do balcão de informações no saguão central. A moça que lhe atendera, muito solícita, mostrou-lhe com o dedo indicador à direção aos dois elevadores daquela instituição.
Senhor H. correu desesperadamente rumo aos tais elevadores a fim de alcançar uma mulher alta, cerca de 40 anos, a qual se encontrava com duas garotas pré-adolescentes. O ‘boa tarde’ dele fora correspondido apenas com um balançar de cabeça e um sorriso tímido da tal mulher. De cabeça baixa, respirando profundamente e desejando findar aqueles minutos eternos, reparou que a mulher vestia um jeans justo com sandálias marrons. Antes, porém, apertou tão vorazmente no botão do 4° andar que quase atropelou as mãos da mulher que se assustara com tal voracidade. Aliviou-se quando viu a mulher aperta o botão do 11°.
Adquirira um trauma aos 7, 8 anos aproximadamente quando ficara preso em um elevador com sua mãe e outras pessoas.  Sentira tanto medo, que chegou a ter difteria braba. Na hora, no ato. Desde então, apresentava um extremo temor ao ter que adentrar um elevador. Só entrava em um se fosse com alguém, mesmo que desconhecido.
De susto, saltou quase que aos pulos no andar desejado sem ao menos esperar a abertura total das portas eletrônicas. Por sorte, pulou quase defronte do destino pretendido. Buscaria ali apenas um documento que comprovasse não pertencer ao quadro de funcionários públicos da assembleia.
Com documento em mãos, ao sair da tal sala, lembrou-se do elevador. Sentiu um calafrio subir a sua coluna cervical. De frente das portas de sua agonia, ainda lembrou a recomendação da atendente do saguão de que não havia escadas. Quão fácil seria ter escadas, pensou. Respirou fundo, olhou para os lados, criou coragem. Recuou. Mas umas olhadinhas. De repente, vozes... Dois funcionários viam dos corredores. Estou salvo. Os calafrios retornavam e agora com certas contrações estomacais ao ver os dois transeuntes passarem por ele e adentrarem em uma sala qualquer daquele andar. 
Olhou firme para as portas, criou coragem, apertou o botão de descer...  Esperou atentamente os números descerem 9... 8...7...  Arregalou os olhos quando as portas abriram. Facilmente, viu que lutaria sozinho contra aquela aflição. Agora nem uma mulher, nem duas garotas. Nada. Ninguém. Nem mesmo sandálias marrons, pretas, vermelhas... Só ele. Desistiu.
Fitou as portas. Novamente olhou para os lados a fim de certifica-se de que ninguém veria tal aberração. Apertou novamente o botão. Agora não mais observava os números... Baixou a cabeça e começou a rezar. Ao ouvir o som da abertura das portas, abriu primeiro a pálpebra direita , o suor pingava de sua face. Novamente ninguém. Estou sem sorte mesmo, pensou.  Deixou as portas fecharem e agora se sentia um verdadeiro imbecil. Sem saber mais o que fazer, ficou lá, parado, atônico. Começou a andar de um lado por outro. De repente, viu sair de sala que entrara para buscar o tal documento outro funcionário. Este fitou-lhe com ar de curiosidade. Seria o funcionário que lhe atendera ou um dos transeuntes que há pouco passara por ele?. A ideia de imbecilidade consumara-se de vez em sua mente diante da dúvida. Sem ter o quê dizer, perguntou se os elevadores estavam funcionando.   

Como percebera que ninguém viria salvar-lhe daquela horrenda situação, resolveu jogar a Deus. Apertou o botão... Desta vez, entrou. Apertou a botão que lhe levaria ao paraíso. Fechou os olhos para não ver as portas fecharem. Ao ouvir o barulho, percebera que enfim estava dentro. “Ai meu Deus”, não sabia se tinha gritado ou apenas pensado. As pernas começaram a tremer, a camisa verde gola-polo pregava-se ao seu corpo tamanho era sua transpiração. Contrações estomacais... Calafrios... Tontura. E MAIS CONTRAÇÕES.  Começou a pensar em como se limparia caso chegasse às vias de fato. Usaria o documento que fora buscar se fosse preciso para limpar a bunda. De repente, sentira um odor fedido. Ai meu Deus do céu, estou todo cagado, agora tinha certeza que a oração não ficara só na mente. Começou a pensar na bosta descendo pelas pernas, sujando a bermuda folgada. Os tocos de bosta emporcalhando o elevador, o rastro de merda deixando o corpo do senhor H. e enfeitando o saguão de um marrom bombom fedido. O cheiro fétido entupindo as narinas do povo. As pessoas dizendo: “cagão, cagão...”. A vergonha invadiu seu coração. Ainda pensou nos filhos vendo-o todo borrado de bosta, os vizinhos apontando-o, a esposa pondo os dedos no nariz para não respirar gotículas de cocô.
De repente, ouviu novamente barulho das portas, dessa vez, para liberdade. Abriu os olhos, saltou de volta ao saguão. Largou um sorriso aliviado. Antes de sair do prédio, porém, lembrou-se de agradecer a atendente, deixando seus olhos passearem discretamente pelo caminho percorrido até a porta de vidro que dava acesso a saída a fim de constatar que não tinha fezes no chão. Agradeceu a Deus não ter cagado tudo. Em casa, sentou-se no sofá, fechou os olhos e pensou em tudo que havia passado.  

No outro dia, ao lavar as roupas da família, Helena, sua esposa, encontrou as roupas usadas pelo marido no dia anterior no fundo do balde, dentro de saco plástico. A esposa, as gargalhadas, gritou do quintal onde havia uma pia velha: “Meu bem, anda brincando com bosta depois de velho? Seu cagão”.

domingo, 26 de abril de 2015

Defronte ao mar de Iparana


Deitado em uma rede, defronte ao mar de Iparana, rememoro em flashes recortados a imagem que vi em uma sexta-feira qualquer. Estava eu dentro de uma sardinha de aço, ferro e plástico que comumente chamamos de automóvel quando de repente me deparei, após parar o carro em um semáforo para pedestres, com um grupo de homens, principalmente velhinhos, dispostos em círculo irregular no canteiro central de uma das principais avenidas de nossa terra alencarina. 
Assim, na diminuta escala de tempo entre o fechar-abrir do tal semáforo, pude observar que os homens jogavam gamão o que de prontidão me trouxe na mente um dos contos do mestre cearense Moreira Campos. Ao bem da verdade que tal quadro não passara de mera criação poética de minha cabeça tupiniquim. Na verdade, os velhinhos jogavam dominó. Um dominó vermelho-sangue disposto em uma tábua fincada entre as pernas dos jogadores da hora. O teor de seriedade somadas as “pequenas” quantias de moedas e cédulas ao lado da horizontalidade das peças sugeriram as possíveis apostas naquela poética reunião matinal. Alguns balançavam a cabeça negativamente como se dissessem que alguém cometara um erro fatal ao jogo e, assim, seria penalizado. Outros apenas olhavam atentamente as manobras dos jogadores. De repente, um dos transeuntes para, balbucia algo, olha o relógio e se vai com um saco fino e branco nas mãos com a “mistura” do almoço.   
Acordo desta letargia com uma buzina frenética de um carro atrás do meu. Passo a primeira e me vou. Dentro do carro, penso naquela cena de há pouco. Quantas histórias entrecortam cada jogada, quantos causos embalam àquela celebração “amigal”, quantos dramas, quantas dores e venturas daqueles homens são compartilhadas. A perda de um ente querido, o filho que casou e que raramente faz uma visita, a amada de juventude que não pôde segui-los nesta estrada labiríntica que é a vida, a falta de estudo, pois por alguma razão tiveram que se evadir da escola e trabalharem para ajudar no sustento do lar, a conta de energia atrasada, a filha adolescente e seminua que anda a dar trabalho, o minguado dinheirinho de cada mês de meu Deus que não supri nem de longe as necessidades familiares, a falta constante do remédio para diabetes ou “pressão alta”, a aposentadoria surrada pela inflação, os resultados das últimas partidas de futebol...
Quantas cousas imagino que rodearam as conversas daqueles homens, naquela manhã, naquele canteiro central.  Penso, entre goles de café, na situação dos idosos da nação brasileira. Penso o quão é indigno o trato que governo (e as pessoas) oferece àqueles que tanto contribuíram para a economia e para construção dessa pátria. E assim, irremediavelmente, penso em como será (se chegar) minha velhice. Como estará nosso Brasil?. Respeitará os direitos constitucionais de nossos idosos?. Veremos às pessoas nos coletivos sentadas nos assentos preferenciais, disfarçando que não estão vendo idosos em pé?. Ou veremos às pessoas nas filas de banco ou lotéricas de “cara fechada” ao verem idosos se aproximando?. Assim, defronte ao mar de Iparana, fecho meus olhos, abro meu coração, dou um leve sorriso e tiro meu chapéu àqueles velhinhos guerreiros daquele canteiro central de uma sexta-feira qualquer.

O Tiro



Um tiro. Apenas um tiro. Um feixe de aço penetrara em seus músculos não tão gastos. A prestação do carro, o financiamento da casa outrora sonhada, as contas domésticas, o curso de línguas do Gustavo, o primogênito, o beijo adiado na esposa... Tudo ficara entre a carne esburacada e a bala. Apenas uma. Indefinida. Letal e silenciosa.
“não vais tomar café?, vai esfriar”.   O nó da gravata desequilibrava o traje a caráter de todas as manhãs. Clara arrumava o marido antes da labuta diária. Dele e dela. Ultimamente, as atribuições do cotidiano a matava. Acordava, ininterruptamente, às 05h30min da matina. E daí, passar o café, acordar os filhos para escola, colocar ração e água para o cachorro, ir ao trabalho... Ainda tinha como função matrimonial arrumar a gravata do esposo. Estou cheia, pensava constantemente nos últimos dias.  Realmente, o café de todas as manhãs não mais ficaria tão amargo como naquela manhã. Na ida ao trabalho, dentro de seu casulo de aço, de rodas e de volante, o marido tornou-se taxativo. Era um olhar dentro de si.  Perturbação constante. Inevitável. O trajeto fora concluído na mesma porcentagem de tempo de todos os dias, no entanto, seu subconsciente inquietante não o deixava apaziguar os instintos. Aprendera desde criança a anatomia do sexo oposto. As múltiplas diferenças e diminutas semelhanças. Era o terceiro filho de cinco. Apesar da família de classe média, sempre estudara nas melhores escolas de sua cidade. O pai era supervisor de supermercado, já a genitora labutava em uma loja de roupas. Organizar e engomar as vestimentas que as dita “madames” não compravam era a primordial atribulação cotidiana. Entretanto, batalharam para que os filhos tivessem uma boa educação.
Formou-se em engenharia elétrica. Era o orgulho da família ou ao menos se confortava com tal constatação. Fora tempos felizes na academia. Estudara as disciplinas de cálculos com esmero de Dante em Divina Comédia, aprendera a conviver e escutar a opinião dos outros, além é claro, vivenciara as noites de boêmia nas famosas calouradas. Em uma dessas, conhecera Clara, futura esposa e mãe de seus três filhos: Sara, 7 anos, Luis Gustavo, e Pedro , o caçula. Clarinha, como era chamada pelo marido nos tempos em que facilmente transformavam fel em mel, era estudante de nutrição quando se conheceram.
Dos primórdios olhares até o casamento foram anos de tranquilidade e comunhão. O namoro transcorrera com afeto, empatia, companheirismo e amor. Clara, amantíssima esposa, cuidava da casa e do lar. A limpeza e organização tanto do espaço físico quanto do psicológico era de sua responsabilidade. Obviamente, sua labuta não se resumia as atividades domésticas. Atuava como uma das nutricionistas de um restaurante universitário. Como fora ótima aluna na graduação, facilmente colocava em prática o que aprendera na universidade.
“como podemos ver nos slides, a base de uma alimentação equilibrada e nutritiva tem de ser com relação à conhecida pirâmide alimentar: os carboidratos devem ser o topo, em seguida as proteínas...”
Sim. De fato, Clara apreendera solidamente o verbo EQUILIBRAR. Equilibrava o trabalho, os filhos, as finanças, o casamento, e por que não as angústias. Sim. Equilibraria também as angústias. No entanto, nos derradeiros dias, as coisas ficaram descoloridas. Acinzentadas. Os beijos de boa noite no marido ficaram cada vez mais escassos. As saídas ao cinema ou à praia um deserto de materialização. Sozinha, na escuridão do quarto e de sua alma, acolchoava-se com o travesseiro de pelúcia, presente do último dia dos namorados.
O corpo atirou-se no chão, inerte. O sangue jorrava da carne agonizante. A bala entrara um pouco acima do tórax e estilhaçou tal qual uma metástase. Não teve dó do outro ainda vivo morrendo. Sentira um prazer irremediável. Esperava o ser de convivência matrimonial sem vida há tempos. Há sim caríssimo leitor, ato dos quais nunca poderá retornar. Esse foi um.   
“ achas que um mocinha é melhor que uma mulher madura?”
“ não quis dizer...”
“ Então?”
“Clara chega. Chega amor.”
Clara saira da cozinha sem ao menos ouvir o amor de seu amor. Essas garotinhas estão cada vez mais ousadas, crescem muito rápido. A alimentação deve ser a causa, falara certa vez à esposa ao assistir uma reportagem sobre a precocidade das garotas e seu rápido crescimento hormonal, e, por conseguinte, sexual.  O comentário despertara o desentendimento naquela noite. A desconfiança imperava agora naquela casa. Telefonemas secretos, saídas constantes, atraso no fim do dia, roupas novas, perfumes... e todos aqueles ingredientes  que temperam o ciúme e o desamor entre um casal, mesmo que nada exista de concretude infidelidade entre os cônjuges. Anos de convivência e cumplicidade para no fim um tiro. Ato impensável? Ou metricamente cronometrado?. Dia e hora calculado? Ou mero acaso da sorte do algoz e azar da vítima?. As circunstâncias mudam de acordo com nossa ótica e interesse leitor meu.
 O choro e o lamento um fato.  Os órfãos sentiam aquela bala real perfura-lhes os sonhos irreais. A dor apertava-lhes o peito tal qual apertara o peito do corpo agora sem vida. O outro que agora teria a total responsabilidade de cuidar do penar dos filhos, de educá-los, de protegê-los e de amá-los, sofria um pesar surdo-mudo. Incomunicável e indecifrável. Uma tempestade misteriosa de satisfação e perda. Uma excelente expressão da antítese. Nunca aprendera nos bancos escolares a utilização efetiva dessa poderosa figura de linguagem. Não havia utilizado na prática até então.
A perícia chegou às 6:15. O início da noite metaforicamente pincelava ares de melancolia. A notícia ao cônjuge vivo chegara por ondas telefônicas. No bolso do casaco dele um número anotado no pedaço de guardanapo amaçado. Nos lábios de Clara empestava sutilmente um aroma do beijo daquela manhã nunca mais dado. Os dois corpos estavam estendidos. Na mesa, ainda constava a frialdade do café na relação entre os dois. Para polícia, assalto seguido de morte. Tudo arquivado.