quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O Necrotério

Contava-se aproximadamente às 00h15min quando ele, apressadamente, chegou ao trabalho. 15 min atrasados do seu horário habitual. Atuava, há exatos seis anos, no único necrotério da cidadezinha do interior onde morava desde nascedouro. Dava-se melhor com os mortos, diziam.  Ia quase que religiosamente ao ardo ofício. De segunda a sexta, no turno da noite, labutava na higienização daqueles que já não mais estavam. Acostumou-se àquilo. O contato direto com os mortos não o assustava.  Fascinava-se até. Não com a morte em si, mas com as fabulações que criava ao vê-los. Muitas das vezes, imaginava como ia à vida deles. Os projetos interrompidos, os relacionamentos fatigados, ou imaginava, mesmo que cinicamente, as últimas relações carnais. Por vezes, fitava-os a fim de constatar, através das faces dos falecidos, algum vestígio que pudesse adivinhar-lhes as profissões.
“Esta tem cara de advogada, já este de policial”
Uma de suas distrações corriqueiras. Interação sem ruptura. E, assim, ficava. Monólogo estranho. Sim. Habituou-se àquilo. Ajudava-lhe a lidar com ela: a solidão. Às vezes, inclusive, desabafava as agruras da vida com algum recém-chegado. Entretanto, dificilmente envolvia-se emocionalmente com a sua matéria de trabalho. Em duas ou três ocasiões, porém, deixou-se levar pela emoção. A primeira foi logo no início quando ainda atuava no turno diurno. Às 14h 30 min, aproximadamente, limpou um garotinho de 6 ou 7 anos que morrera afogado no rio de um povoado próximo, enquanto seus pais, já embriagados, comemoravam o nada com os amigos recentes. Domingo de sol. Não se deram conta do desaparecimento do filho caçula. Aflição, O desespero tomou a cena até a constatação. O choro incontrolável ao avistar um rapaz forte trazendo o frágil corpo inerte. Bracinhos sem vida. Domingo de sangue.
Em outra ocasião, chegou a chorar ao ver uma moça de aproximadamente 20 anos, depois de ter sido espancada, estuprada e lhe arrancado os mamilos. Selvageria. No mais, aprendeu, com o tempo, a imparcialidade precisa durante sua jornada de 00h00mim as 6h00min da manhã. Tudo pelo sustento do lar. Aceitara o emprego quando da sua demissão no antigo serviço numa indústria de fabricação de produtos de higiene. O costume com limpeza fez-lhe rapidamente se familiarizar com o ambiente do necrotério municipal. Nunca sentiu nojo dos corpos cadavéricos que chegavam as suas mãos. Sentia horror mesmo ao pensar num corpo enterrado sem o devido asseio. Achava o maior do desrespeito. De fato, tinha respaldo entre os colegas de ofício. A todos lhe agradava sua personalidade altruísta e dedicada as suas funções.
Naquela noite, porém, percebeu uma movimentação não habitual em frente ao esbranquiçado prédio. Há tempos, não havia reforma. O repasse de verba há meses não chegava. Parte do reboco já havia cedido, além, de haver algumas infiltrações. Nada divulgado na mídia. Contudo, havia boatos de desvios de verbas de algumas repartições públicas a fim de cobrir o rombo das últimas campanhas políticas na cidade. O necrotério, óbvio, entrou na lista de desvios de recursos.
As precariedades do local só desviaram sua atenção quando foi chamado pelos policiais que o aguardavam desde 22hs00mim.
“O senhor pode nos acompanhar à delegacia...”
Na delegacia soube o motivo da tal interpelação. Alguém tivera uma relação sexual com uma adolescente que morrera de traumatismo craniano. Asco generalizado. Tornou-se o principal suspeito do crime de necrofilia. Assim, sem recursos que lhe garantisse um advogado particular, ficou apreendido no distrito policial onde permaneceu por dois meses até a apuração do caso.  Enquanto isso, na cidade, instaurava o burburinho em torno do assunto. Opiniões divididas. Alguns o defendiam veementemente, apontando-lhe as muitas qualidades éticas e morais. Outros, contudo, davam-no tons de incertezas dados a sua excentricidade.
Numa quinta-feira de intenso calor, foi divulgado o laudo pericial que constatou a presença de esperma dele dentro da vagina da moça. Ele, sem nenhum esboço de arrependimento, relatou ao delegado a consumação da necrofilia, detalhando-a com rigor detalhista. Contou que fizera sexo com a defunta por aproximadamente uma hora. E, cinicamente, justificou-se:
“Ela já estava morta mesmo”.
Para família dela ficou a ampliação da dor.

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