Os
gritos de Dona Carminha ecoavam na rua X. Uma ruazinha não asfaltada e de
‘gente boa’ como dizia seu Afonso, proprietário do só brasa, boteco de esquina e point
dos bêbados e dos moradores da vizinhança que descarregavam o cansaço de
mais um dia de trabalho duro. O papo corria solto entre a rapaziada, enquanto o
fígado era forçado a trabalhar mais intensamente a fim de metabolizar o etanol
ingerido. Os reclames do trabalho, a segunda reprovação do filho,
aborrecimentos da política, o beijo “gay” na novela, o aumento dos preços dos
produtos, os reclames das esposas. Em geral, as mesmas prosas. O só brasa era um simples boteco de
subúrbio, embora aconchegante, principalmente pela simpatia e bom humor de seu
Afonso. Vez por outra, os papos ficavam um tanto exaltados. As últimas partidas
de futebol eram responsáveis pelo aumento da testosterona entre os cachaceiros
assíduos. Exaltações que só paravam quando alguma mulher rabuda, propositalmente,
passava entre as enferrujadas cadeiras expostas na calçada. Assobios e
declarações exageradas faziam a festa no bar. De repente, uma risada
generalizada após ouvir seu Joaquim, de 65 anos, dizendo que faria miséria com
o material que há pouco atravessara seus fatigados olhos míopes.
“ O
senhor ainda lembra como faz, seu Joaquim”
Seu
Joaquim resmungava contra os gracejos e gabava-se dos seus feitos sexuais,
expondo como argumento, os treze filhos que teve. Naquele dia, porém, foi os
gritos de dona Carminha que chamaram a atenção. Em instantes, uma multidão se avolumou em
frente ao portão, orientados pela rouca voz oriunda da casa branca de dois
andares. Na rua, o contumaz das tardes transformou-se em alvoroço. Alvoroço
generalizado. Dona Rita, para desgosto de seu João, conhecido como resmungão,
lavava a calçada. Os assíduos
frequentadores degustavam, entre um gole e outro, os corações de frango
demasiadamente salgados. Pivetes jogavam bola na rua, enquanto dois vira-latas
rasgavam os sacos plásticos a fim de devorarem o resto de comidas podres.
Dona
Carminha chegou do fábrica de costura exatamente às 17:00. Entre um cumprimento
rápido a algum vizinho ou uma parada estratégica no mercadinho de seu Cosme,
levou pouquíssimos minutos. Como de costume, dirigiu-se à cozinha a fim de iniciar
à preparação do jantar. As ações seguintes, metricamente calculadas,
transcorreram normalmente, embora, dona Carminha tivesse estranhado a demora da
filha de ir ao seu encontro. No auge dos seus 16, idade na qual as garotas
despertam os feromônios masculinos, Andrea desfrutava de boa saúde e bela
desenvoltura corporal. Cursava enfermagem no ensino médio-integrado. No geral,
uma tímida garota que além de debruça-se aos estudos, costumava descer e ir ao
encontro da mãe para ajudá-la no preparo do jantar. Momento ímpar para as duas.
Ficavam lá conversando e divagando sobre como havia sido o dia. Um possível
desatino na escola, um acontecimento no mundo ou mesmo uma fofoca do bairro.
Conversavam sobre tudo. Tudo mesmo, inclusive sobre sexo.
“Está se
cuidando, não é?”
“Sim,
mamãe.”
E,
assim, as duas riam. Abraçavam-se. De fato eram as melhores amigas. Confidentes
e parceiras. Reinava entre as duas a cumplicidade.
Porém,
naquela tarde, algo estranho pairava. Sentimento de mãe não falha. Intuição. Ao
perceber a demora da filha, dona Carminha dirigiu-se ao andar de cima a fim de
tomar ciência da filha. Ao bater a porta, estranhou ainda mais o a falta de
retorno aos seus chamados.
“Andrea,
tudo bem filha?”
A tensão
ia aumentando a cada vã tentativa de comunicação com a filha. O silêncio
angustiava dona Carminha, sufocando-lhe, dificultando, assim, a respiração com
o já sôfrego pulmão encharcado de anos de nicotina. Com o passar dos minutos, o
timbre de voz aumentava, transparecendo o desespero, fazendo-lhe bater
freneticamente a porta branca do quarto. Tentou arrombá-la. Tentativa frustrada
pela falta de força. Pôs-se, então, a chorar.
Sabia que algo de anormal sucedera. De repente, ouviu passos em sua
direção. Alberto mal acabara de chegar da indústria têxtil na qual trabalhava,
rumou pelas escadas, orientado pelos socos no andar de cima. Não precisou
perguntar à esposa para compreender o que estava acontecendo. Repetiu, assim,
as ações de socar a porta. Cada vez com mais força. De tanto bater a porta, o
suor caia-lhe da testa, pingava a ponto de cola-lhe a camisa gola-polo verde ao
corpo.
“Andrea?,
Andrea?”
Resolveu,
então, arrombar a porta do quarto da filha. Feito obtido com êxito e rapidez
pela força empregada nos chutes. Aproximadamente uns cinco ou seis. O corpo
inerte. De bruços jazia.
“minha
filha, meu Deus”
O
impulso primeiro de seu Alberto foi ter de encontro da filha uma possibilidade,
mesmo remota, de vê-la com vida. Triste constatação. O corpo já sem pulso.
Sinais vitais anulados. Lembrou-se da filha criança quando da primeira vez que
a levara para ver o mar. Ela corria feliz em direção às ondas, voltando-se
desesperadamente quando elas retornavam as areias.
“papai,
papai”
Dona
Carminha, atônica, continuava debruçada ao chão. Olhava o marido com uma vaga
esperança de não ouvir o que seus sentidos já sabiam há alguns minutos. Seu
Alberto, como num gesto racional, ajuda a esposa a levantar e busca nos seus
bolsos seu aparelho celular para acelerar os procedimentos. Antes, porém,
advertiu dona Carminha para não mexer no corpo de Andrea.
Na rua,
aumentava a quantidade de curiosos a fim de saber o porquê dos gritos.
Curiosidade sanada com a chegada do carro do IML. Comoção generalizada. Andrea
de fato era uma moça querida por todos. Tanto pela educação e simpatia quanto
pela beleza. Com a partida do corpo e a recusa da família em falar, aos poucos
ia cessando o número de pessoas. No só
brasa, os frequentadores voltavam aos seus copos. Os papos agora eram
justamente a suposta causa da morte de Andrea.
“
Assassinato”
“ Roubo”
Dona
Rita, que agora não mais lavava a calçada, opinou com dona Gertrudes:
“Doença,
minha filha. A pobrezinha era muito magrinha e amarelada”
Meses
após o incidente, as pessoas ainda mantinham a curiosidade de saberem o que de
fato havia ocorrido com Andrea. O laudo dos peritos apontava para uma tentativa
de estupro e estrangulamento. As investigações indicavam para uma suposta luta
corporal entre a vítima e o algoz. De fato Andrea lutara contra o agressor. O
que mais intrigava o delegado responsável é o fato do não arrombamento da porta
de entrada da casa. Na linha de investigação estavam como suspeitos: o
ex-namorado e o próprio pai. Por falta de provas, o caso foi arquivado, embora
o delegado soubesse que o assassino entrara pela porta da frente.
Depois
de um ano, quase ninguém se lembrava do ocorrido.
No só brasa, o samba animava os
frequentadores. A vida continuava sem Andrea.