quinta-feira, 30 de abril de 2015

As Portas

As portas estão...
Assim nuas, assim vestidas. Não sentem vergonha por tais aspectos.
As portas simplesmente estão.
Calmas agora?
Elas ora estão abertas ora estão fechadas...
Algumas, insistentemente, fecham-se e abrem-se em um vai e vem indecifrável e confuso, rompendo a calmaria de outrora.
As portas apresentam-se nas mais múltiplas e carismáticas cores... azul, amarelo, vermelho e verde.
Onze! Oh Deus! Onze.
As onze trancam-se com cadeados cinza.  As chaves?
- Não as vejo.
Quatro delas apresentam-se entreabertas. São sedutoras. Querem ser exploradas?! Medo?
As portas não estão: nem tristes nem alegres. Apresentam um quê de dúvida e enfrentamento.
São iguais e diferentes.
As portas fitam-me. Querem a morte. Mas de quem? MEDO.
Apavorado, encarou-as expressando coragem e ousadia.  Mentira? Dissimulação.
Estou de paletó, terno e gravata. Já estou morto? MEDO MEDO MEDO.
Voltemos à poesia.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

O Elevador


Chegara ao prédio da assembleia aproximadamente às 3:45 da tarde. Logo ao adentrar o local de suma importância para o bem público, foi ao encontro do balcão de informações no saguão central. A moça que lhe atendera, muito solícita, mostrou-lhe com o dedo indicador à direção aos dois elevadores daquela instituição.
Senhor H. correu desesperadamente rumo aos tais elevadores a fim de alcançar uma mulher alta, cerca de 40 anos, a qual se encontrava com duas garotas pré-adolescentes. O ‘boa tarde’ dele fora correspondido apenas com um balançar de cabeça e um sorriso tímido da tal mulher. De cabeça baixa, respirando profundamente e desejando findar aqueles minutos eternos, reparou que a mulher vestia um jeans justo com sandálias marrons. Antes, porém, apertou tão vorazmente no botão do 4° andar que quase atropelou as mãos da mulher que se assustara com tal voracidade. Aliviou-se quando viu a mulher aperta o botão do 11°.
Adquirira um trauma aos 7, 8 anos aproximadamente quando ficara preso em um elevador com sua mãe e outras pessoas.  Sentira tanto medo, que chegou a ter difteria braba. Na hora, no ato. Desde então, apresentava um extremo temor ao ter que adentrar um elevador. Só entrava em um se fosse com alguém, mesmo que desconhecido.
De susto, saltou quase que aos pulos no andar desejado sem ao menos esperar a abertura total das portas eletrônicas. Por sorte, pulou quase defronte do destino pretendido. Buscaria ali apenas um documento que comprovasse não pertencer ao quadro de funcionários públicos da assembleia.
Com documento em mãos, ao sair da tal sala, lembrou-se do elevador. Sentiu um calafrio subir a sua coluna cervical. De frente das portas de sua agonia, ainda lembrou a recomendação da atendente do saguão de que não havia escadas. Quão fácil seria ter escadas, pensou. Respirou fundo, olhou para os lados, criou coragem. Recuou. Mas umas olhadinhas. De repente, vozes... Dois funcionários viam dos corredores. Estou salvo. Os calafrios retornavam e agora com certas contrações estomacais ao ver os dois transeuntes passarem por ele e adentrarem em uma sala qualquer daquele andar. 
Olhou firme para as portas, criou coragem, apertou o botão de descer...  Esperou atentamente os números descerem 9... 8...7...  Arregalou os olhos quando as portas abriram. Facilmente, viu que lutaria sozinho contra aquela aflição. Agora nem uma mulher, nem duas garotas. Nada. Ninguém. Nem mesmo sandálias marrons, pretas, vermelhas... Só ele. Desistiu.
Fitou as portas. Novamente olhou para os lados a fim de certifica-se de que ninguém veria tal aberração. Apertou novamente o botão. Agora não mais observava os números... Baixou a cabeça e começou a rezar. Ao ouvir o som da abertura das portas, abriu primeiro a pálpebra direita , o suor pingava de sua face. Novamente ninguém. Estou sem sorte mesmo, pensou.  Deixou as portas fecharem e agora se sentia um verdadeiro imbecil. Sem saber mais o que fazer, ficou lá, parado, atônico. Começou a andar de um lado por outro. De repente, viu sair de sala que entrara para buscar o tal documento outro funcionário. Este fitou-lhe com ar de curiosidade. Seria o funcionário que lhe atendera ou um dos transeuntes que há pouco passara por ele?. A ideia de imbecilidade consumara-se de vez em sua mente diante da dúvida. Sem ter o quê dizer, perguntou se os elevadores estavam funcionando.   

Como percebera que ninguém viria salvar-lhe daquela horrenda situação, resolveu jogar a Deus. Apertou o botão... Desta vez, entrou. Apertou a botão que lhe levaria ao paraíso. Fechou os olhos para não ver as portas fecharem. Ao ouvir o barulho, percebera que enfim estava dentro. “Ai meu Deus”, não sabia se tinha gritado ou apenas pensado. As pernas começaram a tremer, a camisa verde gola-polo pregava-se ao seu corpo tamanho era sua transpiração. Contrações estomacais... Calafrios... Tontura. E MAIS CONTRAÇÕES.  Começou a pensar em como se limparia caso chegasse às vias de fato. Usaria o documento que fora buscar se fosse preciso para limpar a bunda. De repente, sentira um odor fedido. Ai meu Deus do céu, estou todo cagado, agora tinha certeza que a oração não ficara só na mente. Começou a pensar na bosta descendo pelas pernas, sujando a bermuda folgada. Os tocos de bosta emporcalhando o elevador, o rastro de merda deixando o corpo do senhor H. e enfeitando o saguão de um marrom bombom fedido. O cheiro fétido entupindo as narinas do povo. As pessoas dizendo: “cagão, cagão...”. A vergonha invadiu seu coração. Ainda pensou nos filhos vendo-o todo borrado de bosta, os vizinhos apontando-o, a esposa pondo os dedos no nariz para não respirar gotículas de cocô.
De repente, ouviu novamente barulho das portas, dessa vez, para liberdade. Abriu os olhos, saltou de volta ao saguão. Largou um sorriso aliviado. Antes de sair do prédio, porém, lembrou-se de agradecer a atendente, deixando seus olhos passearem discretamente pelo caminho percorrido até a porta de vidro que dava acesso a saída a fim de constatar que não tinha fezes no chão. Agradeceu a Deus não ter cagado tudo. Em casa, sentou-se no sofá, fechou os olhos e pensou em tudo que havia passado.  

No outro dia, ao lavar as roupas da família, Helena, sua esposa, encontrou as roupas usadas pelo marido no dia anterior no fundo do balde, dentro de saco plástico. A esposa, as gargalhadas, gritou do quintal onde havia uma pia velha: “Meu bem, anda brincando com bosta depois de velho? Seu cagão”.

domingo, 26 de abril de 2015

Defronte ao mar de Iparana


Deitado em uma rede, defronte ao mar de Iparana, rememoro em flashes recortados a imagem que vi em uma sexta-feira qualquer. Estava eu dentro de uma sardinha de aço, ferro e plástico que comumente chamamos de automóvel quando de repente me deparei, após parar o carro em um semáforo para pedestres, com um grupo de homens, principalmente velhinhos, dispostos em círculo irregular no canteiro central de uma das principais avenidas de nossa terra alencarina. 
Assim, na diminuta escala de tempo entre o fechar-abrir do tal semáforo, pude observar que os homens jogavam gamão o que de prontidão me trouxe na mente um dos contos do mestre cearense Moreira Campos. Ao bem da verdade que tal quadro não passara de mera criação poética de minha cabeça tupiniquim. Na verdade, os velhinhos jogavam dominó. Um dominó vermelho-sangue disposto em uma tábua fincada entre as pernas dos jogadores da hora. O teor de seriedade somadas as “pequenas” quantias de moedas e cédulas ao lado da horizontalidade das peças sugeriram as possíveis apostas naquela poética reunião matinal. Alguns balançavam a cabeça negativamente como se dissessem que alguém cometara um erro fatal ao jogo e, assim, seria penalizado. Outros apenas olhavam atentamente as manobras dos jogadores. De repente, um dos transeuntes para, balbucia algo, olha o relógio e se vai com um saco fino e branco nas mãos com a “mistura” do almoço.   
Acordo desta letargia com uma buzina frenética de um carro atrás do meu. Passo a primeira e me vou. Dentro do carro, penso naquela cena de há pouco. Quantas histórias entrecortam cada jogada, quantos causos embalam àquela celebração “amigal”, quantos dramas, quantas dores e venturas daqueles homens são compartilhadas. A perda de um ente querido, o filho que casou e que raramente faz uma visita, a amada de juventude que não pôde segui-los nesta estrada labiríntica que é a vida, a falta de estudo, pois por alguma razão tiveram que se evadir da escola e trabalharem para ajudar no sustento do lar, a conta de energia atrasada, a filha adolescente e seminua que anda a dar trabalho, o minguado dinheirinho de cada mês de meu Deus que não supri nem de longe as necessidades familiares, a falta constante do remédio para diabetes ou “pressão alta”, a aposentadoria surrada pela inflação, os resultados das últimas partidas de futebol...
Quantas cousas imagino que rodearam as conversas daqueles homens, naquela manhã, naquele canteiro central.  Penso, entre goles de café, na situação dos idosos da nação brasileira. Penso o quão é indigno o trato que governo (e as pessoas) oferece àqueles que tanto contribuíram para a economia e para construção dessa pátria. E assim, irremediavelmente, penso em como será (se chegar) minha velhice. Como estará nosso Brasil?. Respeitará os direitos constitucionais de nossos idosos?. Veremos às pessoas nos coletivos sentadas nos assentos preferenciais, disfarçando que não estão vendo idosos em pé?. Ou veremos às pessoas nas filas de banco ou lotéricas de “cara fechada” ao verem idosos se aproximando?. Assim, defronte ao mar de Iparana, fecho meus olhos, abro meu coração, dou um leve sorriso e tiro meu chapéu àqueles velhinhos guerreiros daquele canteiro central de uma sexta-feira qualquer.

O Tiro



Um tiro. Apenas um tiro. Um feixe de aço penetrara em seus músculos não tão gastos. A prestação do carro, o financiamento da casa outrora sonhada, as contas domésticas, o curso de línguas do Gustavo, o primogênito, o beijo adiado na esposa... Tudo ficara entre a carne esburacada e a bala. Apenas uma. Indefinida. Letal e silenciosa.
“não vais tomar café?, vai esfriar”.   O nó da gravata desequilibrava o traje a caráter de todas as manhãs. Clara arrumava o marido antes da labuta diária. Dele e dela. Ultimamente, as atribuições do cotidiano a matava. Acordava, ininterruptamente, às 05h30min da matina. E daí, passar o café, acordar os filhos para escola, colocar ração e água para o cachorro, ir ao trabalho... Ainda tinha como função matrimonial arrumar a gravata do esposo. Estou cheia, pensava constantemente nos últimos dias.  Realmente, o café de todas as manhãs não mais ficaria tão amargo como naquela manhã. Na ida ao trabalho, dentro de seu casulo de aço, de rodas e de volante, o marido tornou-se taxativo. Era um olhar dentro de si.  Perturbação constante. Inevitável. O trajeto fora concluído na mesma porcentagem de tempo de todos os dias, no entanto, seu subconsciente inquietante não o deixava apaziguar os instintos. Aprendera desde criança a anatomia do sexo oposto. As múltiplas diferenças e diminutas semelhanças. Era o terceiro filho de cinco. Apesar da família de classe média, sempre estudara nas melhores escolas de sua cidade. O pai era supervisor de supermercado, já a genitora labutava em uma loja de roupas. Organizar e engomar as vestimentas que as dita “madames” não compravam era a primordial atribulação cotidiana. Entretanto, batalharam para que os filhos tivessem uma boa educação.
Formou-se em engenharia elétrica. Era o orgulho da família ou ao menos se confortava com tal constatação. Fora tempos felizes na academia. Estudara as disciplinas de cálculos com esmero de Dante em Divina Comédia, aprendera a conviver e escutar a opinião dos outros, além é claro, vivenciara as noites de boêmia nas famosas calouradas. Em uma dessas, conhecera Clara, futura esposa e mãe de seus três filhos: Sara, 7 anos, Luis Gustavo, e Pedro , o caçula. Clarinha, como era chamada pelo marido nos tempos em que facilmente transformavam fel em mel, era estudante de nutrição quando se conheceram.
Dos primórdios olhares até o casamento foram anos de tranquilidade e comunhão. O namoro transcorrera com afeto, empatia, companheirismo e amor. Clara, amantíssima esposa, cuidava da casa e do lar. A limpeza e organização tanto do espaço físico quanto do psicológico era de sua responsabilidade. Obviamente, sua labuta não se resumia as atividades domésticas. Atuava como uma das nutricionistas de um restaurante universitário. Como fora ótima aluna na graduação, facilmente colocava em prática o que aprendera na universidade.
“como podemos ver nos slides, a base de uma alimentação equilibrada e nutritiva tem de ser com relação à conhecida pirâmide alimentar: os carboidratos devem ser o topo, em seguida as proteínas...”
Sim. De fato, Clara apreendera solidamente o verbo EQUILIBRAR. Equilibrava o trabalho, os filhos, as finanças, o casamento, e por que não as angústias. Sim. Equilibraria também as angústias. No entanto, nos derradeiros dias, as coisas ficaram descoloridas. Acinzentadas. Os beijos de boa noite no marido ficaram cada vez mais escassos. As saídas ao cinema ou à praia um deserto de materialização. Sozinha, na escuridão do quarto e de sua alma, acolchoava-se com o travesseiro de pelúcia, presente do último dia dos namorados.
O corpo atirou-se no chão, inerte. O sangue jorrava da carne agonizante. A bala entrara um pouco acima do tórax e estilhaçou tal qual uma metástase. Não teve dó do outro ainda vivo morrendo. Sentira um prazer irremediável. Esperava o ser de convivência matrimonial sem vida há tempos. Há sim caríssimo leitor, ato dos quais nunca poderá retornar. Esse foi um.   
“ achas que um mocinha é melhor que uma mulher madura?”
“ não quis dizer...”
“ Então?”
“Clara chega. Chega amor.”
Clara saira da cozinha sem ao menos ouvir o amor de seu amor. Essas garotinhas estão cada vez mais ousadas, crescem muito rápido. A alimentação deve ser a causa, falara certa vez à esposa ao assistir uma reportagem sobre a precocidade das garotas e seu rápido crescimento hormonal, e, por conseguinte, sexual.  O comentário despertara o desentendimento naquela noite. A desconfiança imperava agora naquela casa. Telefonemas secretos, saídas constantes, atraso no fim do dia, roupas novas, perfumes... e todos aqueles ingredientes  que temperam o ciúme e o desamor entre um casal, mesmo que nada exista de concretude infidelidade entre os cônjuges. Anos de convivência e cumplicidade para no fim um tiro. Ato impensável? Ou metricamente cronometrado?. Dia e hora calculado? Ou mero acaso da sorte do algoz e azar da vítima?. As circunstâncias mudam de acordo com nossa ótica e interesse leitor meu.
 O choro e o lamento um fato.  Os órfãos sentiam aquela bala real perfura-lhes os sonhos irreais. A dor apertava-lhes o peito tal qual apertara o peito do corpo agora sem vida. O outro que agora teria a total responsabilidade de cuidar do penar dos filhos, de educá-los, de protegê-los e de amá-los, sofria um pesar surdo-mudo. Incomunicável e indecifrável. Uma tempestade misteriosa de satisfação e perda. Uma excelente expressão da antítese. Nunca aprendera nos bancos escolares a utilização efetiva dessa poderosa figura de linguagem. Não havia utilizado na prática até então.
A perícia chegou às 6:15. O início da noite metaforicamente pincelava ares de melancolia. A notícia ao cônjuge vivo chegara por ondas telefônicas. No bolso do casaco dele um número anotado no pedaço de guardanapo amaçado. Nos lábios de Clara empestava sutilmente um aroma do beijo daquela manhã nunca mais dado. Os dois corpos estavam estendidos. Na mesa, ainda constava a frialdade do café na relação entre os dois. Para polícia, assalto seguido de morte. Tudo arquivado.