domingo, 26 de abril de 2015

O Tiro



Um tiro. Apenas um tiro. Um feixe de aço penetrara em seus músculos não tão gastos. A prestação do carro, o financiamento da casa outrora sonhada, as contas domésticas, o curso de línguas do Gustavo, o primogênito, o beijo adiado na esposa... Tudo ficara entre a carne esburacada e a bala. Apenas uma. Indefinida. Letal e silenciosa.
“não vais tomar café?, vai esfriar”.   O nó da gravata desequilibrava o traje a caráter de todas as manhãs. Clara arrumava o marido antes da labuta diária. Dele e dela. Ultimamente, as atribuições do cotidiano a matava. Acordava, ininterruptamente, às 05h30min da matina. E daí, passar o café, acordar os filhos para escola, colocar ração e água para o cachorro, ir ao trabalho... Ainda tinha como função matrimonial arrumar a gravata do esposo. Estou cheia, pensava constantemente nos últimos dias.  Realmente, o café de todas as manhãs não mais ficaria tão amargo como naquela manhã. Na ida ao trabalho, dentro de seu casulo de aço, de rodas e de volante, o marido tornou-se taxativo. Era um olhar dentro de si.  Perturbação constante. Inevitável. O trajeto fora concluído na mesma porcentagem de tempo de todos os dias, no entanto, seu subconsciente inquietante não o deixava apaziguar os instintos. Aprendera desde criança a anatomia do sexo oposto. As múltiplas diferenças e diminutas semelhanças. Era o terceiro filho de cinco. Apesar da família de classe média, sempre estudara nas melhores escolas de sua cidade. O pai era supervisor de supermercado, já a genitora labutava em uma loja de roupas. Organizar e engomar as vestimentas que as dita “madames” não compravam era a primordial atribulação cotidiana. Entretanto, batalharam para que os filhos tivessem uma boa educação.
Formou-se em engenharia elétrica. Era o orgulho da família ou ao menos se confortava com tal constatação. Fora tempos felizes na academia. Estudara as disciplinas de cálculos com esmero de Dante em Divina Comédia, aprendera a conviver e escutar a opinião dos outros, além é claro, vivenciara as noites de boêmia nas famosas calouradas. Em uma dessas, conhecera Clara, futura esposa e mãe de seus três filhos: Sara, 7 anos, Luis Gustavo, e Pedro , o caçula. Clarinha, como era chamada pelo marido nos tempos em que facilmente transformavam fel em mel, era estudante de nutrição quando se conheceram.
Dos primórdios olhares até o casamento foram anos de tranquilidade e comunhão. O namoro transcorrera com afeto, empatia, companheirismo e amor. Clara, amantíssima esposa, cuidava da casa e do lar. A limpeza e organização tanto do espaço físico quanto do psicológico era de sua responsabilidade. Obviamente, sua labuta não se resumia as atividades domésticas. Atuava como uma das nutricionistas de um restaurante universitário. Como fora ótima aluna na graduação, facilmente colocava em prática o que aprendera na universidade.
“como podemos ver nos slides, a base de uma alimentação equilibrada e nutritiva tem de ser com relação à conhecida pirâmide alimentar: os carboidratos devem ser o topo, em seguida as proteínas...”
Sim. De fato, Clara apreendera solidamente o verbo EQUILIBRAR. Equilibrava o trabalho, os filhos, as finanças, o casamento, e por que não as angústias. Sim. Equilibraria também as angústias. No entanto, nos derradeiros dias, as coisas ficaram descoloridas. Acinzentadas. Os beijos de boa noite no marido ficaram cada vez mais escassos. As saídas ao cinema ou à praia um deserto de materialização. Sozinha, na escuridão do quarto e de sua alma, acolchoava-se com o travesseiro de pelúcia, presente do último dia dos namorados.
O corpo atirou-se no chão, inerte. O sangue jorrava da carne agonizante. A bala entrara um pouco acima do tórax e estilhaçou tal qual uma metástase. Não teve dó do outro ainda vivo morrendo. Sentira um prazer irremediável. Esperava o ser de convivência matrimonial sem vida há tempos. Há sim caríssimo leitor, ato dos quais nunca poderá retornar. Esse foi um.   
“ achas que um mocinha é melhor que uma mulher madura?”
“ não quis dizer...”
“ Então?”
“Clara chega. Chega amor.”
Clara saira da cozinha sem ao menos ouvir o amor de seu amor. Essas garotinhas estão cada vez mais ousadas, crescem muito rápido. A alimentação deve ser a causa, falara certa vez à esposa ao assistir uma reportagem sobre a precocidade das garotas e seu rápido crescimento hormonal, e, por conseguinte, sexual.  O comentário despertara o desentendimento naquela noite. A desconfiança imperava agora naquela casa. Telefonemas secretos, saídas constantes, atraso no fim do dia, roupas novas, perfumes... e todos aqueles ingredientes  que temperam o ciúme e o desamor entre um casal, mesmo que nada exista de concretude infidelidade entre os cônjuges. Anos de convivência e cumplicidade para no fim um tiro. Ato impensável? Ou metricamente cronometrado?. Dia e hora calculado? Ou mero acaso da sorte do algoz e azar da vítima?. As circunstâncias mudam de acordo com nossa ótica e interesse leitor meu.
 O choro e o lamento um fato.  Os órfãos sentiam aquela bala real perfura-lhes os sonhos irreais. A dor apertava-lhes o peito tal qual apertara o peito do corpo agora sem vida. O outro que agora teria a total responsabilidade de cuidar do penar dos filhos, de educá-los, de protegê-los e de amá-los, sofria um pesar surdo-mudo. Incomunicável e indecifrável. Uma tempestade misteriosa de satisfação e perda. Uma excelente expressão da antítese. Nunca aprendera nos bancos escolares a utilização efetiva dessa poderosa figura de linguagem. Não havia utilizado na prática até então.
A perícia chegou às 6:15. O início da noite metaforicamente pincelava ares de melancolia. A notícia ao cônjuge vivo chegara por ondas telefônicas. No bolso do casaco dele um número anotado no pedaço de guardanapo amaçado. Nos lábios de Clara empestava sutilmente um aroma do beijo daquela manhã nunca mais dado. Os dois corpos estavam estendidos. Na mesa, ainda constava a frialdade do café na relação entre os dois. Para polícia, assalto seguido de morte. Tudo arquivado.

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