domingo, 4 de outubro de 2015

O porta-retrato azul


Todos os dias e, quase sempre no mesmo horário, Tania colocava a água para ferver. Sabia que o filho adorava tomar café quando chegava da universidade. Distração boa depois das obrigações diurnas. Recém-ingresso em economia, ainda não se habituara por completo a nova rotina. Diariamente, ele acordava às 09h30min da manhã. Daí, as ações eram metricamente calculadas a fim de evitar atrasos quanto à condução da tarde que cotidianamente tomava para chegar ao curso. Orgulhosa, Tania acordava antes do filho e preparava-lhe o desjejum.
“a benção, mãe”.
“Deus te acompanhe meu filho”
E, assim, despediam-se momentaneamente.
Depois de abençoá-lo, Tania fazia os afazeres domésticos mais pesados que não eram poucos.  Embora fosse modesta a casa onde morava com o único filho, o trabalho era árduo. Seis cômodos apenas: sala, dois quartos, cozinha, banheiro e uma pequena despensa na qual acomodava a velha máquina de lavar. Mesmo assim, Tania exauria suas energias com o trato do lar. Não trabalhava fora. Vivia da pensão do Estado, deixado pelo marido, um policial militar, morto após salvar uma moça de uma tentativa de assalto.  Não resistiu aos três tiros que levou quando voltava para casa após o seu turno. Dias difíceis. Tania começou a lavar roupa para madames, fazer faxinas em casa de família mais abastadas. Vira-se como podia. Havia uma cria para alimentar. Tempos difíceis àqueles que só melhoraram quando saiu o benefício social que lhe garantia a tão almejada pensão do governo.
 Verdade que a matriarca cochilava após o almoço, despertando aproximadamente às 15h00min. Uma última garimpada na casa, um pano úmido da mesa a fim de expulsar as moscas que teimavam em sobrevoá-la eram as ações quase que automáticas.  Após passar o tão desejado café que o filho tanto gostava, ela sentava no velho sofá revestido de uma manta igualmente gasta e, esperava-o.  Olhava para o relógio que há tempos fora fincado na parede da cozinha. Pedro, o filho, chamava-o de Big Bem, com M mesmo. Uma nítida referência ao famoso relógio inglês. O cuidado excessivo para com o filho veio justamente de tê-lo como família. Desde morte do pai, transformou-se como a unívoca figura masculina naquela casa e companhia inseparável da mãe. Apoiavam-no um ao outro.
Quando de algum atraso do filho, Tania já se desesperava, saindo constantemente, dando voltas na calçada numa tentativa vã de diminuir a aflição. Seu penar só lhe cessava os tremores das pernas quando o via dobrando à direita da Rua André Breton.  Nesses momentos, muitas das vezes, não se continha, indo, assim, ao seu encontro. Já dispostos na redonda mesa de quatro lugares, solviam o saboroso café juntamente com alguns biscoitos amanteigados que eram cuidadosamente colocados dentro de um bote de vidro.
Assim, em estado de comunhão e amizade, permaneciam. Conversavam sobre tudo. Minutos sagrados para ambos. Desfrutavam ao máximo. Momento tão esperado do dia. Certa tarde, quando ele falava animadamente de um seminário bem sucedido na disciplina de história econômica geral, interrompeu aquela habitual confraternização para que sua mãe atendesse Sonia, sua tia.  Vez por outra, Sonia visitava-os. Encontros que se intensificaram nos últimos meses. Quase que toda tarde, nos últimos três ou quatro meses. Eram irmãs mais chegadas desde infância. E, melhores amigas também. Foi justamente Sonia que acobertava o namoro da irmã mais nova quando era terminantemente proibido o encontro com algum moço que se engraçasse pelas filhas de seu João. Pai linha dura delas.
“mulher mal falada, não casa”
Resmungava seu João quando de algum sermão em ambas.
Rememoravam essas e outras danações do tempo de meninas. Pedro se divertia as gargalhadas quando de um dia no qual sua mãe e sua tia levaram uma tremenda surra por terem indo a uma festa no racho numa cidadezinha circunvizinha. Tardes boas.  Ficavam os três degustando do amargo café em volto as lembranças de ambas. Assim, passava-se o tempo.  
Sonia, naquela tarde, após lavar a louça, beijou o rosto da irmã, dando-lhe os calmantes prontamente prescritos. Ao sair, ainda lhe deixou a promessa de volta dali a dois ou três dias. E, olhando o quarto vazio, voltou para irmã e, disse-lhe:
“eu te amo”
E, foi-se ao encontro de seu palio fire. Chegando à sua casa, olhou para a estante de sua sala, e, beijando um porta retrato azul, pensou na possibilidade de passar alguns dias na casa da irmã. Ideia boa, mas longe de materialização devido tanto ao trabalho na confecção quanto aos cuidados do lar, com marido e com três filhos. Limitar-se-ia ao café de todas as tardes e, rejeitando a agora longínqua ideia, devolveu o porta-retrato do sobrinho falecido a estande e pôs a preparar a janta da família.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O Necrotério

Contava-se aproximadamente às 00h15min quando ele, apressadamente, chegou ao trabalho. 15 min atrasados do seu horário habitual. Atuava, há exatos seis anos, no único necrotério da cidadezinha do interior onde morava desde nascedouro. Dava-se melhor com os mortos, diziam.  Ia quase que religiosamente ao ardo ofício. De segunda a sexta, no turno da noite, labutava na higienização daqueles que já não mais estavam. Acostumou-se àquilo. O contato direto com os mortos não o assustava.  Fascinava-se até. Não com a morte em si, mas com as fabulações que criava ao vê-los. Muitas das vezes, imaginava como ia à vida deles. Os projetos interrompidos, os relacionamentos fatigados, ou imaginava, mesmo que cinicamente, as últimas relações carnais. Por vezes, fitava-os a fim de constatar, através das faces dos falecidos, algum vestígio que pudesse adivinhar-lhes as profissões.
“Esta tem cara de advogada, já este de policial”
Uma de suas distrações corriqueiras. Interação sem ruptura. E, assim, ficava. Monólogo estranho. Sim. Habituou-se àquilo. Ajudava-lhe a lidar com ela: a solidão. Às vezes, inclusive, desabafava as agruras da vida com algum recém-chegado. Entretanto, dificilmente envolvia-se emocionalmente com a sua matéria de trabalho. Em duas ou três ocasiões, porém, deixou-se levar pela emoção. A primeira foi logo no início quando ainda atuava no turno diurno. Às 14h 30 min, aproximadamente, limpou um garotinho de 6 ou 7 anos que morrera afogado no rio de um povoado próximo, enquanto seus pais, já embriagados, comemoravam o nada com os amigos recentes. Domingo de sol. Não se deram conta do desaparecimento do filho caçula. Aflição, O desespero tomou a cena até a constatação. O choro incontrolável ao avistar um rapaz forte trazendo o frágil corpo inerte. Bracinhos sem vida. Domingo de sangue.
Em outra ocasião, chegou a chorar ao ver uma moça de aproximadamente 20 anos, depois de ter sido espancada, estuprada e lhe arrancado os mamilos. Selvageria. No mais, aprendeu, com o tempo, a imparcialidade precisa durante sua jornada de 00h00mim as 6h00min da manhã. Tudo pelo sustento do lar. Aceitara o emprego quando da sua demissão no antigo serviço numa indústria de fabricação de produtos de higiene. O costume com limpeza fez-lhe rapidamente se familiarizar com o ambiente do necrotério municipal. Nunca sentiu nojo dos corpos cadavéricos que chegavam as suas mãos. Sentia horror mesmo ao pensar num corpo enterrado sem o devido asseio. Achava o maior do desrespeito. De fato, tinha respaldo entre os colegas de ofício. A todos lhe agradava sua personalidade altruísta e dedicada as suas funções.
Naquela noite, porém, percebeu uma movimentação não habitual em frente ao esbranquiçado prédio. Há tempos, não havia reforma. O repasse de verba há meses não chegava. Parte do reboco já havia cedido, além, de haver algumas infiltrações. Nada divulgado na mídia. Contudo, havia boatos de desvios de verbas de algumas repartições públicas a fim de cobrir o rombo das últimas campanhas políticas na cidade. O necrotério, óbvio, entrou na lista de desvios de recursos.
As precariedades do local só desviaram sua atenção quando foi chamado pelos policiais que o aguardavam desde 22hs00mim.
“O senhor pode nos acompanhar à delegacia...”
Na delegacia soube o motivo da tal interpelação. Alguém tivera uma relação sexual com uma adolescente que morrera de traumatismo craniano. Asco generalizado. Tornou-se o principal suspeito do crime de necrofilia. Assim, sem recursos que lhe garantisse um advogado particular, ficou apreendido no distrito policial onde permaneceu por dois meses até a apuração do caso.  Enquanto isso, na cidade, instaurava o burburinho em torno do assunto. Opiniões divididas. Alguns o defendiam veementemente, apontando-lhe as muitas qualidades éticas e morais. Outros, contudo, davam-no tons de incertezas dados a sua excentricidade.
Numa quinta-feira de intenso calor, foi divulgado o laudo pericial que constatou a presença de esperma dele dentro da vagina da moça. Ele, sem nenhum esboço de arrependimento, relatou ao delegado a consumação da necrofilia, detalhando-a com rigor detalhista. Contou que fizera sexo com a defunta por aproximadamente uma hora. E, cinicamente, justificou-se:
“Ela já estava morta mesmo”.
Para família dela ficou a ampliação da dor.