terça-feira, 10 de novembro de 2015

O homem

O homem chegou menos sério como de costume. Estava animado naquele sábado após sair do exaustivo expediente. Ao entrar em casa, abriu um largo sorriso desdentado para a esposa que lhe retribuiu com um ríspido baixar de pálpebras. O desdém da gorda mulher, fez com que ele deixasse sobre o "balcão americano", ainda sem reboco, um fino saco plástico no qual jazia três espetinhos: um de frango e dois de porco. No sofá rasgado das tantas mordidas de rato, os dois filhos lutavam pelo controle remoto. O homem balbuciou algo que em nada chamou atenção. Seguiu pelo corredor, antes, porém, observou que sua companheira lambia os gordurosos dedos, limpando-os, em seguida, na blusa azul desbotada.
No quarto, ainda lhe sobrou tempo para ler o papel amarelo de ameaça. Um taciturno pensar, antes de retirar do bolso da calça jeans, lavada de graxa, um bilhete com "jogo do bicho" e, deixá-lo sobre a penteadeira empoeirada e envelhecida pelo tempo. De repente, de súbito, o estrondo final. No chão, seu corpo, já sem vida, dividia espaço com a arma enferrujada herdada de seu pai.

domingo, 4 de outubro de 2015

O porta-retrato azul


Todos os dias e, quase sempre no mesmo horário, Tania colocava a água para ferver. Sabia que o filho adorava tomar café quando chegava da universidade. Distração boa depois das obrigações diurnas. Recém-ingresso em economia, ainda não se habituara por completo a nova rotina. Diariamente, ele acordava às 09h30min da manhã. Daí, as ações eram metricamente calculadas a fim de evitar atrasos quanto à condução da tarde que cotidianamente tomava para chegar ao curso. Orgulhosa, Tania acordava antes do filho e preparava-lhe o desjejum.
“a benção, mãe”.
“Deus te acompanhe meu filho”
E, assim, despediam-se momentaneamente.
Depois de abençoá-lo, Tania fazia os afazeres domésticos mais pesados que não eram poucos.  Embora fosse modesta a casa onde morava com o único filho, o trabalho era árduo. Seis cômodos apenas: sala, dois quartos, cozinha, banheiro e uma pequena despensa na qual acomodava a velha máquina de lavar. Mesmo assim, Tania exauria suas energias com o trato do lar. Não trabalhava fora. Vivia da pensão do Estado, deixado pelo marido, um policial militar, morto após salvar uma moça de uma tentativa de assalto.  Não resistiu aos três tiros que levou quando voltava para casa após o seu turno. Dias difíceis. Tania começou a lavar roupa para madames, fazer faxinas em casa de família mais abastadas. Vira-se como podia. Havia uma cria para alimentar. Tempos difíceis àqueles que só melhoraram quando saiu o benefício social que lhe garantia a tão almejada pensão do governo.
 Verdade que a matriarca cochilava após o almoço, despertando aproximadamente às 15h00min. Uma última garimpada na casa, um pano úmido da mesa a fim de expulsar as moscas que teimavam em sobrevoá-la eram as ações quase que automáticas.  Após passar o tão desejado café que o filho tanto gostava, ela sentava no velho sofá revestido de uma manta igualmente gasta e, esperava-o.  Olhava para o relógio que há tempos fora fincado na parede da cozinha. Pedro, o filho, chamava-o de Big Bem, com M mesmo. Uma nítida referência ao famoso relógio inglês. O cuidado excessivo para com o filho veio justamente de tê-lo como família. Desde morte do pai, transformou-se como a unívoca figura masculina naquela casa e companhia inseparável da mãe. Apoiavam-no um ao outro.
Quando de algum atraso do filho, Tania já se desesperava, saindo constantemente, dando voltas na calçada numa tentativa vã de diminuir a aflição. Seu penar só lhe cessava os tremores das pernas quando o via dobrando à direita da Rua André Breton.  Nesses momentos, muitas das vezes, não se continha, indo, assim, ao seu encontro. Já dispostos na redonda mesa de quatro lugares, solviam o saboroso café juntamente com alguns biscoitos amanteigados que eram cuidadosamente colocados dentro de um bote de vidro.
Assim, em estado de comunhão e amizade, permaneciam. Conversavam sobre tudo. Minutos sagrados para ambos. Desfrutavam ao máximo. Momento tão esperado do dia. Certa tarde, quando ele falava animadamente de um seminário bem sucedido na disciplina de história econômica geral, interrompeu aquela habitual confraternização para que sua mãe atendesse Sonia, sua tia.  Vez por outra, Sonia visitava-os. Encontros que se intensificaram nos últimos meses. Quase que toda tarde, nos últimos três ou quatro meses. Eram irmãs mais chegadas desde infância. E, melhores amigas também. Foi justamente Sonia que acobertava o namoro da irmã mais nova quando era terminantemente proibido o encontro com algum moço que se engraçasse pelas filhas de seu João. Pai linha dura delas.
“mulher mal falada, não casa”
Resmungava seu João quando de algum sermão em ambas.
Rememoravam essas e outras danações do tempo de meninas. Pedro se divertia as gargalhadas quando de um dia no qual sua mãe e sua tia levaram uma tremenda surra por terem indo a uma festa no racho numa cidadezinha circunvizinha. Tardes boas.  Ficavam os três degustando do amargo café em volto as lembranças de ambas. Assim, passava-se o tempo.  
Sonia, naquela tarde, após lavar a louça, beijou o rosto da irmã, dando-lhe os calmantes prontamente prescritos. Ao sair, ainda lhe deixou a promessa de volta dali a dois ou três dias. E, olhando o quarto vazio, voltou para irmã e, disse-lhe:
“eu te amo”
E, foi-se ao encontro de seu palio fire. Chegando à sua casa, olhou para a estante de sua sala, e, beijando um porta retrato azul, pensou na possibilidade de passar alguns dias na casa da irmã. Ideia boa, mas longe de materialização devido tanto ao trabalho na confecção quanto aos cuidados do lar, com marido e com três filhos. Limitar-se-ia ao café de todas as tardes e, rejeitando a agora longínqua ideia, devolveu o porta-retrato do sobrinho falecido a estande e pôs a preparar a janta da família.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O Necrotério

Contava-se aproximadamente às 00h15min quando ele, apressadamente, chegou ao trabalho. 15 min atrasados do seu horário habitual. Atuava, há exatos seis anos, no único necrotério da cidadezinha do interior onde morava desde nascedouro. Dava-se melhor com os mortos, diziam.  Ia quase que religiosamente ao ardo ofício. De segunda a sexta, no turno da noite, labutava na higienização daqueles que já não mais estavam. Acostumou-se àquilo. O contato direto com os mortos não o assustava.  Fascinava-se até. Não com a morte em si, mas com as fabulações que criava ao vê-los. Muitas das vezes, imaginava como ia à vida deles. Os projetos interrompidos, os relacionamentos fatigados, ou imaginava, mesmo que cinicamente, as últimas relações carnais. Por vezes, fitava-os a fim de constatar, através das faces dos falecidos, algum vestígio que pudesse adivinhar-lhes as profissões.
“Esta tem cara de advogada, já este de policial”
Uma de suas distrações corriqueiras. Interação sem ruptura. E, assim, ficava. Monólogo estranho. Sim. Habituou-se àquilo. Ajudava-lhe a lidar com ela: a solidão. Às vezes, inclusive, desabafava as agruras da vida com algum recém-chegado. Entretanto, dificilmente envolvia-se emocionalmente com a sua matéria de trabalho. Em duas ou três ocasiões, porém, deixou-se levar pela emoção. A primeira foi logo no início quando ainda atuava no turno diurno. Às 14h 30 min, aproximadamente, limpou um garotinho de 6 ou 7 anos que morrera afogado no rio de um povoado próximo, enquanto seus pais, já embriagados, comemoravam o nada com os amigos recentes. Domingo de sol. Não se deram conta do desaparecimento do filho caçula. Aflição, O desespero tomou a cena até a constatação. O choro incontrolável ao avistar um rapaz forte trazendo o frágil corpo inerte. Bracinhos sem vida. Domingo de sangue.
Em outra ocasião, chegou a chorar ao ver uma moça de aproximadamente 20 anos, depois de ter sido espancada, estuprada e lhe arrancado os mamilos. Selvageria. No mais, aprendeu, com o tempo, a imparcialidade precisa durante sua jornada de 00h00mim as 6h00min da manhã. Tudo pelo sustento do lar. Aceitara o emprego quando da sua demissão no antigo serviço numa indústria de fabricação de produtos de higiene. O costume com limpeza fez-lhe rapidamente se familiarizar com o ambiente do necrotério municipal. Nunca sentiu nojo dos corpos cadavéricos que chegavam as suas mãos. Sentia horror mesmo ao pensar num corpo enterrado sem o devido asseio. Achava o maior do desrespeito. De fato, tinha respaldo entre os colegas de ofício. A todos lhe agradava sua personalidade altruísta e dedicada as suas funções.
Naquela noite, porém, percebeu uma movimentação não habitual em frente ao esbranquiçado prédio. Há tempos, não havia reforma. O repasse de verba há meses não chegava. Parte do reboco já havia cedido, além, de haver algumas infiltrações. Nada divulgado na mídia. Contudo, havia boatos de desvios de verbas de algumas repartições públicas a fim de cobrir o rombo das últimas campanhas políticas na cidade. O necrotério, óbvio, entrou na lista de desvios de recursos.
As precariedades do local só desviaram sua atenção quando foi chamado pelos policiais que o aguardavam desde 22hs00mim.
“O senhor pode nos acompanhar à delegacia...”
Na delegacia soube o motivo da tal interpelação. Alguém tivera uma relação sexual com uma adolescente que morrera de traumatismo craniano. Asco generalizado. Tornou-se o principal suspeito do crime de necrofilia. Assim, sem recursos que lhe garantisse um advogado particular, ficou apreendido no distrito policial onde permaneceu por dois meses até a apuração do caso.  Enquanto isso, na cidade, instaurava o burburinho em torno do assunto. Opiniões divididas. Alguns o defendiam veementemente, apontando-lhe as muitas qualidades éticas e morais. Outros, contudo, davam-no tons de incertezas dados a sua excentricidade.
Numa quinta-feira de intenso calor, foi divulgado o laudo pericial que constatou a presença de esperma dele dentro da vagina da moça. Ele, sem nenhum esboço de arrependimento, relatou ao delegado a consumação da necrofilia, detalhando-a com rigor detalhista. Contou que fizera sexo com a defunta por aproximadamente uma hora. E, cinicamente, justificou-se:
“Ela já estava morta mesmo”.
Para família dela ficou a ampliação da dor.

sábado, 26 de setembro de 2015

Multiprocesso

Processo
Avesso
Digresso
Contra-verso
Engesso
Cesso
Reingresso
Ingresso
Reprocesso
Excesso
Confesso
Congresso
Recesso
Retrocesso
Atravesso
Progresso
Reverso
Desprogresso
Abcesso
Insucesso
Desavesso
Reinpresso
Verso
Café-expresso.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Passagem

Os gritos de Dona Carminha ecoavam na rua X. Uma ruazinha não asfaltada e de ‘gente boa’ como dizia seu Afonso, proprietário do só brasa, boteco de esquina e point dos bêbados e dos moradores da vizinhança que descarregavam o cansaço de mais um dia de trabalho duro. O papo corria solto entre a rapaziada, enquanto o fígado era forçado a trabalhar mais intensamente a fim de metabolizar o etanol ingerido. Os reclames do trabalho, a segunda reprovação do filho, aborrecimentos da política, o beijo “gay” na novela, o aumento dos preços dos produtos, os reclames das esposas. Em geral, as mesmas prosas. O só brasa era um simples boteco de subúrbio, embora aconchegante, principalmente pela simpatia e bom humor de seu Afonso. Vez por outra, os papos ficavam um tanto exaltados. As últimas partidas de futebol eram responsáveis pelo aumento da testosterona entre os cachaceiros assíduos. Exaltações que só paravam quando alguma mulher rabuda, propositalmente, passava entre as enferrujadas cadeiras expostas na calçada. Assobios e declarações exageradas faziam a festa no bar. De repente, uma risada generalizada após ouvir seu Joaquim, de 65 anos, dizendo que faria miséria com o material que há pouco atravessara seus fatigados olhos míopes.
“ O senhor ainda lembra como faz, seu Joaquim”
Seu Joaquim resmungava contra os gracejos e gabava-se dos seus feitos sexuais, expondo como argumento, os treze filhos que teve. Naquele dia, porém, foi os gritos de dona Carminha que chamaram a atenção.    Em instantes, uma multidão se avolumou em frente ao portão, orientados pela rouca voz oriunda da casa branca de dois andares. Na rua, o contumaz das tardes transformou-se em alvoroço. Alvoroço generalizado. Dona Rita, para desgosto de seu João, conhecido como resmungão, lavava a calçada.  Os assíduos frequentadores degustavam, entre um gole e outro, os corações de frango demasiadamente salgados. Pivetes jogavam bola na rua, enquanto dois vira-latas rasgavam os sacos plásticos a fim de devorarem o resto de comidas podres.   
Dona Carminha chegou do fábrica de costura exatamente às 17:00. Entre um cumprimento rápido a algum vizinho ou uma parada estratégica no mercadinho de seu Cosme, levou pouquíssimos minutos. Como de costume, dirigiu-se à cozinha a fim de iniciar à preparação do jantar. As ações seguintes, metricamente calculadas, transcorreram normalmente, embora, dona Carminha tivesse estranhado a demora da filha de ir ao seu encontro. No auge dos seus 16, idade na qual as garotas despertam os feromônios masculinos, Andrea desfrutava de boa saúde e bela desenvoltura corporal. Cursava enfermagem no ensino médio-integrado. No geral, uma tímida garota que além de debruça-se aos estudos, costumava descer e ir ao encontro da mãe para ajudá-la no preparo do jantar. Momento ímpar para as duas. Ficavam lá conversando e divagando sobre como havia sido o dia. Um possível desatino na escola, um acontecimento no mundo ou mesmo uma fofoca do bairro. Conversavam sobre tudo. Tudo mesmo, inclusive sobre sexo.
“Está se cuidando, não é?”
“Sim, mamãe.”
E, assim, as duas riam. Abraçavam-se. De fato eram as melhores amigas. Confidentes e parceiras. Reinava entre as duas a cumplicidade. 
Porém, naquela tarde, algo estranho pairava. Sentimento de mãe não falha. Intuição. Ao perceber a demora da filha, dona Carminha dirigiu-se ao andar de cima a fim de tomar ciência da filha. Ao bater a porta, estranhou ainda mais o a falta de retorno aos seus chamados.
“Andrea, tudo bem filha?”
A tensão ia aumentando a cada vã tentativa de comunicação com a filha. O silêncio angustiava dona Carminha, sufocando-lhe, dificultando, assim, a respiração com o já sôfrego pulmão encharcado de anos de nicotina. Com o passar dos minutos, o timbre de voz aumentava, transparecendo o desespero, fazendo-lhe bater freneticamente a porta branca do quarto. Tentou arrombá-la. Tentativa frustrada pela falta de força. Pôs-se, então, a chorar.  Sabia que algo de anormal sucedera. De repente, ouviu passos em sua direção. Alberto mal acabara de chegar da indústria têxtil na qual trabalhava, rumou pelas escadas, orientado pelos socos no andar de cima. Não precisou perguntar à esposa para compreender o que estava acontecendo. Repetiu, assim, as ações de socar a porta. Cada vez com mais força. De tanto bater a porta, o suor caia-lhe da testa, pingava a ponto de cola-lhe a camisa gola-polo verde ao corpo.
“Andrea?, Andrea?”
Resolveu, então, arrombar a porta do quarto da filha. Feito obtido com êxito e rapidez pela força empregada nos chutes. Aproximadamente uns cinco ou seis. O corpo inerte. De bruços jazia.    
“minha filha, meu Deus” 
O impulso primeiro de seu Alberto foi ter de encontro da filha uma possibilidade, mesmo remota, de vê-la com vida. Triste constatação. O corpo já sem pulso. Sinais vitais anulados. Lembrou-se da filha criança quando da primeira vez que a levara para ver o mar. Ela corria feliz em direção às ondas, voltando-se desesperadamente quando elas retornavam as areias.
“papai, papai”  
Dona Carminha, atônica, continuava debruçada ao chão. Olhava o marido com uma vaga esperança de não ouvir o que seus sentidos já sabiam há alguns minutos. Seu Alberto, como num gesto racional, ajuda a esposa a levantar e busca nos seus bolsos seu aparelho celular para acelerar os procedimentos. Antes, porém, advertiu dona Carminha para não mexer no corpo de Andrea.  
Na rua, aumentava a quantidade de curiosos a fim de saber o porquê dos gritos. Curiosidade sanada com a chegada do carro do IML. Comoção generalizada. Andrea de fato era uma moça querida por todos. Tanto pela educação e simpatia quanto pela beleza. Com a partida do corpo e a recusa da família em falar, aos poucos ia cessando o número de pessoas. No só brasa, os frequentadores voltavam aos seus copos. Os papos agora eram justamente a suposta causa da morte de Andrea.
“ Assassinato”
“ Roubo”
Dona Rita, que agora não mais lavava a calçada, opinou com dona Gertrudes:

“Doença, minha filha. A pobrezinha era muito magrinha e amarelada”
Meses após o incidente, as pessoas ainda mantinham a curiosidade de saberem o que de fato havia ocorrido com Andrea. O laudo dos peritos apontava para uma tentativa de estupro e estrangulamento. As investigações indicavam para uma suposta luta corporal entre a vítima e o algoz. De fato Andrea lutara contra o agressor. O que mais intrigava o delegado responsável é o fato do não arrombamento da porta de entrada da casa. Na linha de investigação estavam como suspeitos: o ex-namorado e o próprio pai. Por falta de provas, o caso foi arquivado, embora o delegado soubesse que o assassino entrara pela porta da frente.
Depois de um ano, quase ninguém se lembrava do ocorrido.

No só brasa, o samba animava os frequentadores. A vida continuava sem Andrea.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Indébita, o pagar da carne

Acabara de sair do banheiro.  Os cabelos ainda molhados denunciavam a ducha de há pouco.  Com a sempre toalha de seda, presente da madrinha promotora de justiça, esfregava  entre as loiras madeixas, respigando as últimas gotículas no chão branco do quarto. Com a toalha úmida, jogou-a sobre a cama e, de súbito, começou a apalpar a rechonchuda vulva rosada.  Daí, ao impulso impensado de gravar-se no celular foi instante.  O dedo indicador da mão direita deslizava suavemente ao longo dos fios grossos de carne. Um gélido calafrio subia-lhe da coluna cervical a nuca. Uma suave pontada no baixo-ventre impulsionava-a intensificar os momentos. A penetração progressiva. Cada vez mais agressiva. Os três dedos devoraram-na. Pareciam ter vida própria. Os gemidos de prazer saiam sufocados diante da limitação dos metros quadrados que a distanciam no quarto da irmã caçula. Vez por outra, retirava os “amiguinhos” e, assim, batia-lhe forte sobre os fios vermelhos umas três a quatro vezes, para só depois lhe enfiar novamente os dedos freneticamente. Gemia. Cada vez mais. De repente, um som com uma maior amperagem. Uma breve pausa. Um olhar sorrateiro. A porta nada alarmara. Susto contido. Mais rapidez nos movimentos. A mão esquerda apertava-lhe os seios. Os bicos avermelhados apontavam sua excitação.Mais gemidos. Os movimentos progrediam no compasso do seu prazer. Gemia gemia ... sensação que antecede... Enfim, o gozo. Espessura grossa e branca. Tirou seus dedos molhados. Um por um, ela lambia-os da unha de tintura vermelha até o fim deles.  Antes, porém, levou o aparelho celular, testemunhal daquele monólogo, à altura da linda face angelical. Os verdes olhos fixavam-se para câmera do smarthphone a fim de registrar sua “aventura”. Às vezes, fechava-os por instantes, abrindo-os grandes em seguida. Olhar provocador.  Contava com seus 19, embora aparentasse bem menos.  Passava a língua levemente nos lábios, da esquerda para direita, mordiscando os carnudos vermelhos lábios. Umedecia-os. Delicadamente lambia as últimas gosmas esbranquiçadas. O beijo final para câmera.  Mais provocação.
A arma do menor infrator penetrou na súbita passagem. Constatou que não fora dessa vez. Da agonia depois, saltou do copo com líquido cheio de sódio e cristal seus pensamentos. Lembrou-se do aparelho que fora com o tintilar da voz infantil.  Na casa da madrinha, aos choros e berros indecifráveis, ela reavia sua privacidade expandida. Já projetava sua vida arrematada a todos. Ideia oca tivera. Vulgarização de si. A madrinha, entre uns goles de Contreau, rabiscava as possibilidades a fim de munirem-se contra o porvir. Contou detalhadamente à madrinha as agruras que havia experimentado. Até então, nunca havia pensado na problemática social.
Ao ir à faculdade, percebera os olhares sugestivos, os sorrisos de canto de boca ou mesmo dedos lhe apontando. De repente, palavras desaforadas dirigidas a ela referente ao dedo indicador. Piadinhas vorazmente destruíram-na. Desesperadamente e, ao choro, correu pelos corredores ao estacionamento.  Acordara com o acariciar da mãe. Um susto incomunicável. Outros presságios se seguiram. No dia do roubo, não foi à universidade na qual cursava o quarto período de publicidade. Ausência que se repetiria por toda aquela semana. Impulsionada pela madrinha, voltou, com bastante custo, a suas atividades cotidianas. Embora, vivenciasse o terror. A cada sorriso uma angústia, a cada olhar a si uma interminável aflição. Suava. A vontade iminente de ativar o aparelho lacrimal. Constava que todas haviam visto sua nudez imprudente. Maldita ideia, pensava. Tudo mudou. O isolamento social necessário. Não era a mesma. Sentia-se violada. Violação autorizada por mim. Pensamentos que vieram enquanto folheava, sem nenhum interesse, uma desatualizada revista que jazia no centro-sala da clínica de doutora Fabíola. Estuprada virtualmente, embora não tivesse nenhuma concretude dos fatos, vivia no invólucro de si. Protegida. Agredia a todos antes mesmo de se aproximassem.  Raros eram as ocasiões na qual alguém rompia aquele prepúcio de exílio voluntário. Certa vez, ao ver uma belíssima jovem se aproximar, enquanto tomava sol na área da piscina do edifício onde morava, teve um impulso de levantar-se e ir-se antes da importuna. Entretanto, antes que pudesse por seu plano em curso, fora interpelada com um sorriso límpido seguido de um bom dia entusiasmado. Respondeu-lhe dissabores antes da moça completar a enunciação. A cabeça em frangalhos a cada ida à terapia. Sem nervos.
Um dia, quando voltara de mais uma sessão, no banho de sempre, ao se refrescar do suor pregado no corpo, as gotículas quentes misturavam-se com as gélidas que caiam do chuveiro. Deslizavam, desviando-se de curso ao colidir com os pontudos mamilos rosados. Viveria a dualidade que ela mesma provoca-lhe. Voltara a se flexionar depois de meses.                 

sábado, 6 de junho de 2015

A Fotógrafa


Diante do espelho do seu quarto, gostava de se exibir nua. Naquele grande oráculo de vidro no qual se acostumou a examinar suas reluzentes curvas, suas alvas nádegas em formação promissora, seu sexo rosado, exauria-se consternada com seu narcisismo. Passava longo tempo a tecer suas finas madeixas pretas e, sempre na pausa do pente, virava-se ao tal espelho, inclinava a face acima do ombro, empinava-se e dava batidinhas na bunda. Gostosinha.
“ Cibele, vais se atrasar”
Cotidianamente, acordava daquela contemplação narcisista com os chamados de Dona Margarida, sua boníssima genitora. Jovem e bonita, Cibele era uma ótima filha. Sempre educada e solícita com os pais. O pai, seu João, trabalhava com representação de firmas ou coisa desse tipo. Já dona Margarida ralava em um cartório do centro da cidade. Ambos trabalhavam fio a fio a fim de dar melhores condições de vida para a única filha.
“  hoje é a tal entrevista?”
“ Sim mãezinha”
“ Quer que eu vá te deixar, minha filha?”
“ Não precisa seu João. Já sou uma mocinha” Saiu-se rindo, antes, porém, deixou um beijo na face de seus genitores.
Chegou às 15:30. Uma hora antes do horário marcado. Dirigiu-se à recepção do estúdio FOX  MAGAZINE onde foi atendida e orientada a aguardar que a chamasse.  Enquanto esperava, observou tudo que seus castanhos olhos puxados puderam apreender. A mobília colorida, os quadros surrealistas de Dali na parede, fotografias na mesa central, revistas sobre a história da fotografia, colagens de  Andy Warhol...
“ Cibele. Cibele?
“ Ah! Desculpe-me. Estava distraída.  A moça da recepção apenas sorriu como se dissesse que não havia problema para tal concatenação.
“ Siga em frente no corredor, dobre à direita. Porta azul, boa sorte”
“ Obrigada”
Trêmula, Cibele seguiu na direção da porta na qual daqui a pouco adentraria e passaria por uma sabatina a fim de conquistar o tão almejado primeiro estágio na área de concentração de seus estudos: fotojornalismo.
“ Entre”
“  Boa tarde”
“ Boa tarde, tudo bem, Cibele?
Impactante. Essa foi a primeira imagem da mulher que lhe disparava perguntas e mais perguntas sobre as habilidades profissionais da moça: manuseio de câmera, domínio razoável da escrita padrão, disciplinas já cursadas na graduação...
“ Então, cursas o 5° período de Comunicação Social...?”
Cibele respondia com exímia prontidão a cada quesito da editora chefa da FOX, embora observasse atentamente o batom vinho na boca carnuda de Paula. Linda. Paula, na casa dos 27, era uma publicitária já bem encaminhada na profissão herdada da mãe. Era sim de uma família abastada na qual vários empreendimentos consolidaram o voluptuoso capital familiar: hotéis, pousadas, restaurantes...
A administração dos negócios, desde o avançar temporal dos pais, ficava a cargo dos três filhos, obedecendo a aptidão de cada um: George que estudou turismo e gastronomia, ficou responsável pelos restaurantes, enquanto Kleber, formado justamente em administração,  encarregou-se de tocar os hotéis e pousadas espalhadas no litoral nordestino. Assim, Paula ganhara como presente de formatura um estúdio da família para administrá-lo. É bem da verdade que tivera essa benesse que a possibilitou tecer e equilibrar sua vida profissional e financeira. Entretanto, Paula tinha sim um apurado de talento e ousadia. Ampliou os horizontes da empresa de comunicação, expandiu parcerias e, de quebra, firmou contratos rentáveis com campanhas publicitárias para o governo. Atualmente buscava uma nova assistente depois da demissão de Sandra por motivos de “deficiência técnica” como a própria Paula expressaria em uma conversa com os pais na ocasião. 
Cibele buscava desde o início de sua vida acadêmica uma oportunidade de aliar prática a teoria. Leu o anúncio nos classificados do jornal da “promissora” vaga.  Imediatamente, mandou o currículo como mencionado no matutino. Após alguns dias, recebeu um telefonema marcando uma entrevista.
“ Desculpe-me, eu estou...”
Não se sentiu muito a vontade com a câmera, apesar de ter sido exímia nas disciplinas de fotografia. A presença e, principalmente, aproximação de Paula nas suas costas, acelerara seus batimentos cardíacos. A respiração também acelerara. A passividade e o nervosismo de Cibele despertara um aura sensorial de prazer e fascínio em Paula.
“ Tente de novo, meu bem...” . Meu bem?, estranhou.
A graciosidade da fala somada o largo sorriso que denunciava o quão era alvos e bem tratados a arcada dentária da publicitária, contagiaram Cibele e fizeram-na concatenar em si uma confiança exacerbada. Desta vez, poria a cabo toda punhado de dúvida  e hesitação sobre sua capacidade de manuseio daquela Canon...
“ Por hoje chega. Manteremos contato em breve...”
Apenas essa simplória frase foi ouvida por Cibele ao deixar a sala de porta azul. Para Cibele, não fosse o sorriso largo de Paula, daria por findado ali mesmo a esperança de obter aquele estágio. Foi justamente com outro sorriso que se despediu.   
Em casa, à noite, como contumaz, ficou pelada de frente ao espelho. A imagem de sua beleza quase perversa traziam-na excitação e soberba. Às vezes, depois do banho, colocava alguma música e dançava até à exaustão, rodopiando até cair de bruços sobre a cama.  Na manhã daquele dia, ainda nua, acordou com o despertador do smartphone ao lado do seu travesseiro. Percebeu que adormecera após seus passos de dança da noite anterior. Ainda sonolenta, observou uma mensagem ao desligar o irritante som do galo eletrônico. Ao ler, pulou imediatamente da cama. Um misto de satisfação e alegria inundou-na. Imediatamente deixou aquele estado de sonolência e meteu-se embaixo do chuveiro. Deixou-se num pensar mais verdejante, enquanto a gélida água percorria seu corpo.
Os dois primeiros dias foram de extremo encantamento e medo. Sempre com a solícita e afetuosa supervisão de Paula, mostraria suas habilidades naquele período de experiência  Trabalharia ali... Pertinho. Porta azul azul azul... Dali a uma amizade foi apenas o curto espaço de tempo de cinco dias. Paula a convidava a almoçarem juntas. Elogia tudo de CI. Dos negros finos fios de cabelo a roupas. Dizia que tinha se afeiçoado em demasia e se entusiasmado de mais por Cibele. Estranhamente, Cibele rebebia os elogiosos comentários de sua chefa com a maior naturalidade, embora estranhasse um pouco os olhares fixos e os sorrisos açucarados.
Habituou-se uma a outra. Geralmente, saiam juntas após expediente da empresa. Bares, exposições de arte, cinema...vez por outra, iam a casa de ambas. Sim. Ultrapassaram as paredes da FOX, embora não deixassem aquela repentina aproximação paralisar os compromissos assumidos. Tinham prazo e agenda corrida. Muitas propagandas a serem executadas. Certa vez, ao observar Paula conversando com o gerente executivo, bateu-lhe um aperto e uma imensa vontade de chorar. A possibilidade de não ser contratada trouxe-lhe uma inquietação.      
 Boca rosada, magrinha, minissaia e uma camisa vermelha. Foi assim que chegou ao apartamento 312, no 6° andar. Recebera uma mensagem de texto convidando-a tomar uns drinks. Ao subir pelo elevador, estranhou ter vindo sem sutiã já que geralmente usava a fim de avolumar um pouco mais os diminutos seios. Mal entrou, Paula, talvez de um súbito impulso freudiano, puxou-a pelo antebraço direito e, repentinamente, a solveu pela diminuta cintura. O beijo leve e brando. Azul azul azul...
Cibele deixara ser usada sem nenhum esforço. Numa submissão irreconhecível. Atada. Paula sugava seus seios com voracidade de um animal que há dias não come. Apenas fechou os olhos, enquanto Paula passava a língua na sua esbelta barriga rumo à vulva. Entregara-se de vez. Gemia Gemia Gemia...
Sentiu um pouco de asco quando Paula pós sua vagina para apreciação lingual.  Lambeu insegura, porém os gemidos de prazer da publicitária a estimulou a enfiar à língua cada vez mais profunda e ligeira. Umedecendo suavemente os dedos com a saliva, Paula enfiou a mão direita embaixo da minissaia vermelha listrada e introduziu na linha de Vênus o dedo indicador, depois o seu vizinho e conforme o degelo do iceberg, mais acelerado ficava o movimento. Chupou os dedinhos dos pés Da moça um por um... Novamente o beijo leve e brando.  Voltando a devorá-la em seguida.
Dias depois, já havia regularizado a documentação para assinatura de contrato de trabalho, quando recebera um envelope com as fotos retiradas no dia da entrevista. No envelope madeira ainda havia um bilhete: ‘FICARAM BOAS’. Cibele olhou para fotos, mastigou o chiclete no canto esquerdo da boca, sorriu e disse: “ Ficaram”. Azul azul azul...


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